O Voando em Moçambique é um pequeno tributo à História da Aviação em Moçambique. Grande parte dos seus arquivos desapareceram ou foram destruídos e o que deles resta, permanecem porventura silenciosos nas estantes de muitos dos seus protagonistas. A História é feita por todos aqueles que nela participaram. É a esses que aqui lançamos o nosso apelo, para que nos deixem o seu contributo real, pois de certo possuirão um espólio importante, para que a História dessa Aviação se não perca nos tempos e com ela todos os seus “heróis”. As gerações futuras de certo lhes agradecerão. Muitos desses verdadeiros heróis, ilustres aventureiros desconhecidos, souberam desafiar os perigos de toda a ordem, transportando pessoas e bens de primeira necessidade ou evacuando doentes, em condições meteorológicas adversas, quais “gloriosos malucos das máquinas voadoras”. Há que incentivar todos aqueles que ainda possuam dados e documentos que possam contribuir para que essa História se faça e se não extinga com eles, que os publiquem, ou que os cedam a organizações que para isso estejam vocacionadas. A nossa gratidão a todos aqueles que ao longo dos tempos se atreveram e tiveram a coragem de escrever as suas “estórias” e memórias sobre a sua aviação. Só assim a História da Aviação em Moçambique se fará verdadeiramente, pois nenhum trabalho deste género é suficientemente exaustivo e completo. A todos esses ilustres personagens do nosso passado recente que contra tudo e todos lutaram para que essa história se fizesse, a nossa humilde e sincera homenagem.

A eles dedicamos estas linhas.

José Vilhena e Maria Luísa Hingá

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Quem tiver fotos e/ou documentos sobre a Aviação em Moçambique e os queira ver publicados neste blogue, pode contactar-me pelo e-mail:lhinga@gmail.com

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07/10/06

44-Eduardo Alexandre Viegas Ferreira de Almeida



Eduardo Alexandre Viegas Ferreira de Almeida, foi um dos “onze de Inglaterra”, os primeiros pilotos da TAP que em 1945 rumaram às terras de sua majestade para na BOAC frequentarem o curso de Transportes Públicos e Navegação Aérea. Possuidor do Certificado de Piloto de Transportes Públicos nº 25, o seu primeiro contacto com a aviação deu-se no Aero Clube de Portugal, onde a 8 de Abril de 1940 iniciou a sua instrução de pilotagem num Tiger Moth (CS-AAI) sob a batuta do 1º Sargento Mecânico Santos. Foi brevetado a 16 de Maio de 1940, com um total de 14 horas de voo. A 9 de Agosto desse mesmo ano alista-se no Curso de Pilotos Milicianos da Aviação Militar tendo sido promovido a Oficial Piloto Aviador em 1941. Após onze anos de serviços na TAP, onde voou Dakotas e Skymasters, é obrigado a sair por ter tido um acidente de viação que lhe provocou vários traumatismos numa perna e um veredicto terrível por parte dos médicos que o assistiram após as sete operações consecutivas a que foi submetido: inapto para o voo. Após ter aceite o lugar de chefe de vendas na firma Adriano Maia em Lourenço Marques, conseguiu recuperar a sua licença de voo e pilotar um Piper Tripacer (CR-AFK) que pertencia à empresa. Numa viagem que efectuou de Lourenço Marques a Leopoldville, encontrou um velho amigo de outrora, o Coronel Jacinto da Silva Medina, Director de Operações da DTA de Angola, que o convidou a concorrer para o lugar de Piloto Chefe, lugar que tomou posse a 12 de Fevereiro de 1959. Aí se manteve, voando Dakotas e Friendships, até ter sido convidado para Inspector Provincial da Aeronáutica Civil, cargo que abandonou em 1975, quando foi forçado a emigrar para o Brasil.

A sua esposa, publicou o livro “Quarenta Anos de Aviação” após a sua morte, obra que relata as alegrias e amarguras de um piloto profissional.

Uma das inúmeras “estórinhas” que o Cte. Ferreira de Almeida relata no seu livro:

“Lenha” em Nhamarroi

Durante quase dois anos percorri Moçambique de lés a lés, fui até Angola e varias vezes me desloquei a Joanesburgo e Pretório no Tripacer, o pequeno mono motor de quatro lugares ao serviço da firma comercial onde desempenhava as funções de chefe do departamento de vendas.

O nosso CR-AFK, tal era a matricula do Tripacer, cumpria de modo impecável as suas tarefas, sem uma avaria e correspondendo inteiramente ao que dele se esperava.

Porém, como qualquer avião que se preza, não aceita de bom grado as burrices de quem o pilota!

Por isso se recusou a descolar de Nhamarroi (Zambézia), quase se transformando em irrecuperável sucata.

Eu conto como foi...

Descolámos às 7 da manhã de Nampula com destino ao Gurué. Tínhamos estimado um tempo de percurso de hora e meia e o tempo. Embora coberto e com visibilidade da ordem dos 2 a 5 quilómetros, não parecia com tendência para piorar.

Como passageiro Mr. Dorrel, um inglês funcionário da nossa representada, a Dexion Ltd. De Londres. E dado que a gasolina de aviação no Gurué era bastante mais cara que em Nampula, para além de encher os normais tanques de combustível do avião, mandei carregar dois tamboretes de gasolina de 100 octanas, de 20 litros cada.

Saíramos de Lourenço Marques havia seis dias e já tratáramos de negócios de promoção da Dexion na Beira, Luabo, Quelimane, António Enes, Ilha de Moçambique e Nampula. Mr. Dorrel era vendedor e técnico das cantoneiras Dexion, mas para mal dos meus pecados tinha sido navegador na RAF. Depois das histórias que durante seis dias me buzinara aos ouvidos, eu ficara ciente do elevado nível de conhecimentos de navegação que possuía. Falou-me de navegação astronómica, em novos métodos de navegação radioeléctrica, e em confidencia me disse que colaborara nas experiências de secretíssimo equipamento de radar!

Assim, porque estava tonto de sono, não tive dúvidas e pedir a Mr. Dorrel que desse uma ajudinha na condução da viajem, enquanto eu “ferrava o galho” por uns momentos, pedido que aceitou entusiasticamente. Antes de me “encostar”, forneci-lhe umas quantas dicas. Que a cerca de uns dez minutos antes do Gurué, em vez da floresta cerrada que até lá sobrevoaríamos, iriam aparecer umas clareiras com um verde diferente (as plantações de chá). O terreno, para norte da rota iria enrugando até se transformar em elevada serrania. Portanto, em caso da visibilidade se deteriorar, guinar para a esquerda e... acordar o dorminhoco.

Esqueci-me de lhe dizer que. Se nada lhe aparecesse ..... me acordasse!

Quando acordei, faltavam uns vinte minutos para a hora estimada de chegada.

Continuamos a sobrevoar densa floresta, que nenhuma referencia oferecia para controlar a navegação e não víamos sinal algum do chá. À hora estimada para a chegada, nem chá, nem serras. A mesma floresta que, havia hora e meia sobrevoávamos. Como a visibilidade não fosse superior a uns dois a três quilómetros, resolvi fazer uma pesquisa em quadrado. Não estava preocupado, pois tinha ainda cerca de duas horas de gasolina e o Gurué não devia estar longe.

Mas à medida que o tempo ia passando e a pesquisa em quadrado não resultava, comecei a ficar nervoso. Como fora possível cair em tal alhada? Em que é que isto ia dar?

Repentinamente, pareceu-me divisar uma pista. Mas que pista seria? Na área so existia a pista do Gurué e aquilo que estava vendo não era o Gurué de certeza. Sem dar por isso os nervos iam tomando conta de mim.

Na base de um pequeno morro, cercada de densa floresta, parecia-me uma pequena pista de uns 500 a 600 metros de comprimento. Sobrevoada a pista, divisei relativamente perto desta e metidas na floresta duas ou três casas. A pista e as casas acabaram por me baratinar, pois não havia na área tal combinação que não fosse o próprio Gurué. Onde estaria eu?

Foi a partir desta pergunta que se radicou a ideia de aterrar.

Sobrevoei várias vezes a pista, fiquei quase certo que se tratava de uma pista abandonada. Pareceu-me, dada a regularidade na distribuição da vegetação, que a pista virara plantação. Resolvi aterrar.

Depois de uma aproximação muito cuidadosa, preparando para abortar a aterragem mal me apercebesse de qualquer obstáculo ou irregularidade no terreno, acabei por fazer uma aterragem tipo veludo. Logo que nos apeamos, reconheci que aterrara numa incipiente plantação de tabaco!

Pouco tempo depois de aterrarmos, apareceu um branco, que se identificou como dono do terreno, ex-pista de Nhamarroi, agora uma pequena plantação de tabaco!

Nhamarroi era um pequeno posto administrativo encravado na floresta a cerca de cinquenta quilómetros a sul do Gurué.

A pista fora abandonada porque durante os dois anos da sua existência nunca lá aterrara nenhum avião!

Talvez por ter estado tanto tempo sobre forte tensão nervosa, “entrei” em roda livre de....asneira.

Assim, pensei, sei onde estou, tenho gasolina de sobra, em menos de vinte minutos posso estar no Gurué....

Dizem que é pela boca que morre o peixe, mas o piloto é pela burrice que é apanhado.

Estou certo que se o dono do terreno nos tivesse convidado para um café, teria havido tempo para arrefecer o meu ego, ferido por tão estúpida situação. Uma chávena de café e um pequeno papo repousante e talvez o bom senso se tivesse sobreposto à burrice de uma resolução tomada sob a preocupação de “salvar a face”.

Com ar de quem se dá a cuidados exagerados, percorri a pé a distancia que a pista nos oferecia para a descolagem. Fui dando uma vista de olhos ao piso e contando os passos. Devido a uma série de valas de drenagem que, do ar, passavam despercebidas, para a descolagem dispúnhamos de 286 passos!

Óptimo, pensei, estou farto de descolar em menos de 300 metros.

(1ª burrice: 286 passos não são 286 metros. Mas apenas e quanto muito, somente 240 metros).

O piso era bem melhor que muitos onde antes já descolara.

(2ª burrice: os tufos de capim, ainda por cima húmidos, iriam aumentar a distancia de corrida no chão e, no caso de querer abortar a descolagem, aumentariam a distância de aceleração e travagem em mais de 60%).

Como o motor estava a funcionar perfeitamente, nada havia a desaconselhar a descolagem.

(3ª e mais grave das burrices: estava a uma altitude que não era a do nível do mar, e Nhamarroi, como indicava o altímetro do avião, achava-se a 2.800 pés, 840 metros e a temperatura ambiente era de 25 ºC. Estas condições correspondiam a uma altitude de 4.000 pés, 1.200 metros. A essa altitude, o motor do Tripacer nunca produziria mais de 135 cavalos, em vez dos normais 150 ao nível do mar. Com essa potencia disponível, a distancia de descolagem aumentaria de 40%).

Portanto para cúmulo de tanta burrice, descolei.

Isto é, tentei descolar. Como se aproximasse a galope o fim da pista sem ter velocidade suficiente para tirar o avião do chão, cortei o motor e apliquei travões a fundo.

Não será fácil descrever, por ordem cronológica e aceitável realismo, a série de coisas, barulhos e abanões que se sucederam, sucessivamente sem cessar....Senti o avião, com as rodas completamente travadas, deslizar sobre o capim húmido como se estivesse equipado com skis. Dei uma valente cabeçada no pára-brisas quando as duas pernas do trem de aterragem foram arrancadas ao passar por uma das valas que atravessavam o final da pista. Bati com a cabeça no tecto quando outra vala arrancou a perna da roda do nariz. E, em menos tempo do que tudo isto leva a contar, acabei de pernas para o ar, pendurado pelo cinto de segurança, no meio de medonha poeirada e impressionante silencio! Apenas Mr. Dorrel se manifestou com repetidos “Well! Well!”.

O forte cheiro a gasolina acordou-me da pasmada idiotice em que fiquei, depois de tanto barulho e abanões.

Gritei a Mr. Dorrel que abrisse a porta e abandonasse o avião. A única porta que serve os lugares da frente ficavam do lado dele. Mas, por mais que ele esbracejasse à procura do fecho, não dava com ele.

Já muito aflito, acabou por me berrar que o fecho tinha desaparecido. Tentei ajuda-lo, mas de cabeça para baixo, também eu não conseguia encontrar o maldito fecho.

Entretanto, ouço o dono do terreno gritar que o avião estava a arder!

Lembro-me então dos dois tambores de gasolina que transportávamos. Um deles, não sei como, saltou da bagageira e passando entre nos dois , veio encravar-se sob a minha cabeça!

O risco de passar a churrasco espevitou o meu raciocínio e descobri porque não encontrávamos o fecho da porta, Os painéis dos mapas!

Para me servirem simultaneamente de carta e mesa de navegação, eu colara a colecção de cartas aeronáuticas de Moçambique em chapas de cartão prensado.

Devia ser uma dessas chapas que tapava o fecho da porta.

E foi o que aconteceu. Em menos de um “cagagésimo de segundo” (*) afastei a chapa, abri a porta, e depois de Mr. Dorrel sair, abandonei o avião.

Mal me apanhei fora dele, verificando que o incêndio se resumia ainda à gasolina que pingava do carburador, regressei à cabina e, retirando o extintor portátil, consegui apagar aquele foco de incêndio. Felizmente, nem o tanque de gasolina nem qualquer dos tambores rebentaram ou verteram....

Quando tudo acalmou, sentei-me no chão e ... chorei.

Pouco mais resta para contar desta “estorinha”.

Desmontei as asas e juntei os cacos em que se transformara o pobre Tripacer, e num camião alugado, seguimos para o Gurué. A nossa chegada, como seria de esperar, causou sensação.

O CR-AFK, depois de dois meses de reparação em Germinston (África do SUL) nas oficinas da Placo, voltou como novo, para novas viagens e trabalhos.


(*) Cagagésimo de segundo – intervalo de tempo, inferior ao segundo, que em Portugal identifica o tempo decorrido entre o aparecimento da luz verde do semáforo e a irritante buzinadela do carro que se encontra nossa retaguarda

1 comentário:

Maria disse...

Ah, que legal encontrar aqui esse trecho transcrito do livro do meu avô :)))