O Voando em Moçambique é um pequeno tributo à História da Aviação em Moçambique. Grande parte dos seus arquivos desapareceram ou foram destruídos e o que deles resta, permanecem porventura silenciosos nas estantes de muitos dos seus protagonistas. A História é feita por todos aqueles que nela participaram. É a esses que aqui lançamos o nosso apelo, para que nos deixem o seu contributo real, pois de certo possuirão um espólio importante, para que a História dessa Aviação se não perca nos tempos e com ela todos os seus “heróis”. As gerações futuras de certo lhes agradecerão. Muitos desses verdadeiros heróis, ilustres aventureiros desconhecidos, souberam desafiar os perigos de toda a ordem, transportando pessoas e bens de primeira necessidade ou evacuando doentes, em condições meteorológicas adversas, quais “gloriosos malucos das máquinas voadoras”. Há que incentivar todos aqueles que ainda possuam dados e documentos que possam contribuir para que essa História se faça e se não extinga com eles, que os publiquem, ou que os cedam a organizações que para isso estejam vocacionadas. A nossa gratidão a todos aqueles que ao longo dos tempos se atreveram e tiveram a coragem de escrever as suas “estórias” e memórias sobre a sua aviação. Só assim a História da Aviação em Moçambique se fará verdadeiramente, pois nenhum trabalho deste género é suficientemente exaustivo e completo. A todos esses ilustres personagens do nosso passado recente que contra tudo e todos lutaram para que essa história se fizesse, a nossa humilde e sincera homenagem.

A eles dedicamos estas linhas.

José Vilhena e Maria Luísa Hingá

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Quem tiver fotos e/ou documentos sobre a Aviação em Moçambique e os queira ver publicados neste blogue, pode contactar-me pelo e-mail:lhinga@gmail.com

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06/10/06

40-1ª Viagem experimental da TAP a África




Folheando as 103 páginas do relatório da 1ª viagem experimental a África realizada em Março de 1946 pelo Dakota “CS-TDC” ao serviço dos Transportes Aéreos Portugueses, vem-me a lembrança a celebre frase do não menos celebre que a proferiu, “nunca tantos ficaram a dever tanto a tão poucos” (Sir Wiston Churchill). Fascinante documento este, cuja cópia a que tive acesso se encontra preservada nos arquivos do Museu do Ar em Alverca, onde num misto de aventura e querer, podemos deliciar-nos com o humor tão característico desses Homens que tanto contribuíram para que esta companhia se possa orgulhar dos seus 60 anos de história. Refiro-me obviamente aos Transportes Aéreos Portugueses, hoje com a designação de TAP Air Portugal.

Quantas dificuldades certamente encontraram esses intrépidos Aviadores, num mundo onde a tecnologia dos aviões utilizados e o apoio inexistente de ajudas a navegação aérea, se aliavam ao insípido suporte meteorológico da época.

Decorria o ano de 1946, (num pós-guerra ainda recente), quando teve lugar o primeiro dos quatro voos experimentais realizados e a que este relatório diz objectivamente respeito. Ao iniciar a sua leitura, é bem patente a vontade e o orgulho dos que participaram nessa odisseia pioneira: ”Foi mantido e cumprido o horário marcado para a realização da 1ª viagem experimental”:

Não foi de certo fácil cumprir este desígnio.

Teve este voo como objectivo principal, tal como os outros três que se lhe seguiram por percursos não totalmente coincidentes, preparar e escolher o itinerário definitivo para a implementação da celebre “Linha Aérea Imperial”, nome pomposo escolhido na época para designar a primeira linha aérea regular que ligaria o novo ao velho continente, mas precisamente a capital do Império as suas Colónias Africanas de então.

Como razões principais para a implementação imediata desta ligação, pode ler-se no documento: A dificuldade de transportes, a natural ansiedade das noticias da metrópole, o espírito nervoso dos Portugueses, o atraso em que estamos em relação aos outros povos coloniais quanto a transportes aéreos, e certamente outras razoes imperam para que se iniciem as carreiras quanto antes. Em todas as classes se verifica nitidamente o anseio, em muitas a descrença. Há quem julgue que a primeira viagem experimental foi um episódio sem a devida continuidade. Há desejos, fé, ironia e descrença. É necessário satisfazer os bons anseios e destruir as más profecias.

Foi durante muito tempo esta ligação a mais longa linha aérea regular realizada em aviões Douglas DC-3, os famosos Dakotas, que ainda hoje são vistos a voar por esse mundo fora. Possui a TAP no seu espólio um exemplar que, infelizmente, vai apodrecendo lentamente ao ar livre nas suas instalações da Portela de Sacavém. Que pena não ser possível preservar este espécimen singular em lugar condigno (que bem que ficava naquele enorme espaço vazio que liga as Partidas às Chegadas do actual Aeroporto Internacional de Lisboa!)

Reconstruído com trabalho, amor e carolice há pouco mais de quatro anos para comemorar o cinquentenário da companhia aérea de bandeira (leia-se TAP Air Portugal) é um dos dois únicos sobreviventes civis registados em Portugal. O outro (CS-AZL), era mantido, pelo menos ate há pouco tempo, pelos seus proprietários com o certificado de navegabilidade valido, isto é a voar! (Baseado em Itália e a voar para a Air Umbria, não há bela sem senão!)

Já muito se escreveu nas paginas desta revista sobre a matéria, embora os resultados obtidos sejam pouco animadores. Mais um pouco da nossa história aeronáutica se vai perdendo com o tempo, a juntar a tantas outras relíquias de difícil recuperação que apodrecem pacatamente por esse País fora. Ficaram de certo na lembrança daqueles pilotos e de tantos outros de cujo quotidiano fizeram parte. Recordo-vos só como exemplo os Skymater (DC-4) da TAP em Alverca, o Super Constellation também da TAP junto à EN125 no Algarve, os Noratlas, os Junkers 52, os F-86 ou até os Chipmunk que recentemente iam emigrando todos para o Reino de Sua Majestade (leia-se Reino Unido), talvez imitando os saudosos Spitfires e Hurricanes que há muito tiveram o mesmo destino.
Aqui fica mais um apelo para quem possa evitar esta significativa perda num já tão pequeno espolio da nossa história aeronáutica nacional.

Durante muitos anos foi o Dakota o ex-libris dos Transportes Aéreos Portugueses, avião que começou esta Linha Aérea Imperial no ultimo dia do ano de 1946, cobrindo 24.540 quilometros que ligam Lisboa a Lourenço Marques (hoje Maputo) via Luanda.

“ A forma regular como foi feita toda a viagem foi devidamente considerada por todos aqueles que se interessam por Linhas Aéreas. Em Luanda, num grupo onde estava um comerciante que deveria seguir dentro de poucos dias para a América, via Leopoldeville- Lisboa, dizia-se que era preferível ir no nosso avião. Os americanos usam Skymasters nessa linha e, casualmente, desde que chegamos a Luanda e voltamos de Lourenço Marques os seus dois aviões tinham chegado com um atraso de cerca de 48 horas”:

Estes eram alguns dos comentários do autor deste relatório, Comandante Manuel Maria Rocha, o patriarca conforme é apelidado pelos seus pares no livro Historias com Asas, piloto oriundo dos quadros da DETA (Moçambique) onde voou desde 1937 tendo passado posteriormente pela Belga SABENA. Da sua tripulação faziam parte o 2º piloto Rui Brito, navegador Rodrigues Mano, Rádio-Telegrafistas Ribeiro Simões e Fernandes Zoio, Mecânico Chefe J.H.Barnes, Mecânicos Fonseca da Silva e David Gonçalves, Meteorologista Alberto Leão Diniz e o delegado do SAC (Secretariado de Aeronáutica Civil) Major Humberto da Cruz. Descrevo o percurso realizado por estes homens e que teve inicio a 24 de Março de 1946: Lisboa-Rabat-Port Etienne-Bathurst-Freetown-Accra-Lagos-Libreville-Luanda (31 horas e 53 minutos de voo com chegada a 27 de Março), Luanda- Nova Lisboa-Lusaka-Bulawayo-Lourenço Marques (13 horas e 27 minutos com saída a 31 de Março e chegada a 1 de Abril), Lourenço Marques-Lewingston-Elisabethville-Luanda (13 hoas e 19 minutos com saída a 5 e chegada a 7 de Abril), Luanda- Libreville-Accra-Freetown-Bathurst-Port Etienne-Rabat-Lisboa (29 horas e 39 minutos com saída a 9 e chegada a 12 de Abril).

Reza o relatório do Comandante Manuel Maria Rocha no que concerne ao capítulo dedicado ao pessoal, além de sugerir a suspensão de um dos rádio-telagrafistas por algum tempo nesta linha pois “por temperamento ou por crise nervosa resultante do desastre com o avião Liberator” parece “ não voar à vontade”, terminando com a definição de personagem que deveria desempenhar de futuro o papel das actuais assistentes de bordo: ”O lugar previsto de camareiro de bordo dos aviões, terá de ser desempenhado antes por uma rapariga convenientemente seleccionada e educada no seu mister aéreo. Além de tudo há que atender ao conforto moral e confiança que é preciso oferecer a qualquer das muitas senhoras passageiras que viajem sem qualquer pessoa de família ou amiga”.
Como eram diferentes os tempos de então, não nos esquecendo que a aviação comercial dava os seus primeiros passos! No que respeita ao material usado nesta linha, já então eram apontados problemas na sua utilização: “os aviões Dakota devem servir nas ligações de Luanda com Lourenço Marques, mas no troço Lisboa-Luanda melhor será o emprego de material com maior raio de acção e maior capacidade de carga. O Skymaster deve começar a ser encarado como necessário não só para ser empregado na linha de Africa, como para treino do pessoal que com ele terá de trabalhar na próxima futura linha do Brasil que se pretende montar.”
Somente oito anos depois, mais precisamente em 1954, foram os Dakotas substituídos pelos Skymaster nas linhas de Africa. Quanto ao Brasil ficou-se pelas intenções, pois este equipamento não se mostrou adequado para este tipo de operação (pouco raio de acção para a carga a transportar).

Outro problema complicado surgido nesta odisseia foi o da vestimenta dos tripulantes. Temperaturas elevadas levaram a que se considerasse que “o fardamento azul não e admissível na Linha Imperial. É necessário cuidar dum outro mais leve e que melhor se ajuste ao clima. A farda de caqui que a tripulação levou é de mau pano, grosso e fácil de enxovalhar. Os óculos que foram distribuídos à tripulação não servem. São de ordinária qualidade e devem ser substituídos. Por poucos elementos e por poucas vezes puderam ser utilizados. As meias, segundo alguns comentários feitos pareciam, e julgo que são, meias para menina. Se não há meias próprias no mercado nacional, poderão ser adquiridas em Accra, onde há de boa cor, de boa malha e baratas”. Já naquele tempo havia locais de excelência para compras a preços aliciantes.

Quanto ao calçado devem “ser distribuídos botins semelhantes ao que usa o pessoal da BOAC (British Overseas Airways Corporation) nas viagens aéreas por terras de Africa. São de grande conveniência por causa dos mosquitos".

Comidas e bebidas para as refeições a bordo: “as refeições que nos foram fornecidas em Lisboa tinham o cunho das que são fornecidas para as merendas no campo. Tudo em conjunto, mal acondicionado e sem repartição.

No campo da saúde, (Medicamentos a Bordo), deveria a companhia organizar “uma pequena farmácia com o que lhe parecer de melhor aplicação para o caso das doenças mais vulgares nas regiões que se atravessam. Em Luanda por exemplo tive que mandar comprar Lactil para quase todos os elementos da tripulação que se sentiram mal dispostos com qualquer enfermidade intestinal. Em Freetown encontramos um avião da BOAC parado, por terem sido atacados de desinteria alguns elementos da tripulação.”

Neste particular os problemas encontrados não mudaram muito com o tempo!

Entre o material solicitado para os voos experimentais, ”parece-me que seria de grande vantagem que os aviões fossem equipados com uma máquina fotográfica. Sob o ponto de vista meteorológico poderiam colher-se múltiplos aspectos de céus que muito interessam a navegação”. Contudo salvaguardando os objectivos e o interesse supremo da companhia, seria “claro que não se faria da máquina uso clandestino e só seria utilizada quando não houvesse qualquer entrave de ordem internacional”.

Protocolo à parte, como tudo mudou no que se refere à geopolítica Africana: ” devemos também, e isto é necessário, dotar os nossos aviões com pequenas bandeiras dos países cujos aeródromos utilizamos, a fim de serem desfraldadas durante a permanência no terreno. Para Africa pelo itinerário agora seguido são necessárias apenas as de Inglaterra e da França. Provavelmente nos dias de hoje seriam precisas bem mais do que as duas bandeiras referenciadas pelo Comandante Manuel Maria Rocha.

Transportes terrestres “em Luanda e Lourenço Marques é necessário ter um transporte tipo camioneta para o pessoal e para os passageiros”.

Por ultimo e não menos importante o capitulo financeiro designado por Despesas Extraordinárias: “ou por verba especial ou por aumento de vencimentos das tripulações é necessário considerar que não é possível desviar o pessoal das deferências que em terras de Africa são vulgares entre as várias pessoas que se encontram nos aeródromos. As usuais atenções e os hábitos daqueles com quem temos de contactar obrigam a despesas extraordinárias que tem de ser admitidas e levadas em conta. É uma ajustamento convencional ao nível da vida daqueles com quem tudo temos de tratar.”

Como era diferente esta aviação de 1946!!!!

* em itálico as transcrições do relatório do Comandante Manuel Maria Rocha

José Vilhena

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