O Voando em Moçambique é um pequeno tributo à História da Aviação em Moçambique. Grande parte dos seus arquivos desapareceram ou foram destruídos e o que deles resta, permanecem porventura silenciosos nas estantes de muitos dos seus protagonistas. A História é feita por todos aqueles que nela participaram. É a esses que aqui lançamos o nosso apelo, para que nos deixem o seu contributo real, pois de certo possuirão um espólio importante, para que a História dessa Aviação se não perca nos tempos e com ela todos os seus “heróis”. As gerações futuras de certo lhes agradecerão. Muitos desses verdadeiros heróis, ilustres aventureiros desconhecidos, souberam desafiar os perigos de toda a ordem, transportando pessoas e bens de primeira necessidade ou evacuando doentes, em condições meteorológicas adversas, quais “gloriosos malucos das máquinas voadoras”. Há que incentivar todos aqueles que ainda possuam dados e documentos que possam contribuir para que essa História se faça e se não extinga com eles, que os publiquem, ou que os cedam a organizações que para isso estejam vocacionadas. A nossa gratidão a todos aqueles que ao longo dos tempos se atreveram e tiveram a coragem de escrever as suas “estórias” e memórias sobre a sua aviação. Só assim a História da Aviação em Moçambique se fará verdadeiramente, pois nenhum trabalho deste género é suficientemente exaustivo e completo. A todos esses ilustres personagens do nosso passado recente que contra tudo e todos lutaram para que essa história se fizesse, a nossa humilde e sincera homenagem.

A eles dedicamos estas linhas.

José Vilhena e Maria Luísa Hingá

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Quem tiver fotos e/ou documentos sobre a Aviação em Moçambique e os queira ver publicados neste blogue, pode contactar-me pelo e-mail:lhinga@gmail.com

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Por motivos alheios algumas das imagens não abrem no tamanho original. Nesse caso podem selecionar “abrir imagem num novo separador” ou “Guardar imagem como…”.

26/08/11

755-75º Aniversário da DETA


Comemora-se hoje 26 de Agosto de 2011 o 75º Aniversário da fundação da DETA - Linhas Aéreas de Moçambique.

Foi a 26 de Agosto de 1936 que a DETA – Divisão de Exploração dos Transportes Aéreos foi criada pelo Diploma Legislativo n.º 521, publicada no Boletim Oficial n.º 34 - 1ª série da Colónia de Moçambique, com a assinatura do Governador-geral interino em exercício José Nunes de Oliveira.

Muitos anos de uma longa história recheada de factos e marcos importantes de uma companhia que foi pioneira em muitas áreas.

Neste momento resta-nos homenagear e honrar a memória de todos os que nela serviram, os que felizmente estão entre nós e os que já partiram para outros voos. A estes a certeza de que não serão esquecidos.

O seu esforço, abnegação e teimosia tornaram possível que a DETA nascesse, crescesse e se transformasse na companhia que ainda hoje transporta nas suas asas o país a que pertence.

O Voando em Moçambique continuará a pugnar para que a história da DETA não seja esquecida.

22/08/11

754- UMA TRAGÉDIA EM FIM DE SEMANA


DO-27 (3449)
Passaram quase cinquenta anos; para mim foi ontem!
Tinha chegado a Mueda a meio da tarde. Regressar a Nampula fazendo mais duas horas e tal de voo a somar às três e meia que já tinha voado sob áspera turbulência, não era coisa que me entusiasmasse. Era sexta-feira e o avião não fazia falta na Base. Podia ficar.
Pelo posto de rádio comuniquei a decisão. Jantámos com gosto, bebemos bem e perdi ao poker. Quando acabámos de jogar já passava das duas.
No dia seguinte, 16 de Maio de 1964, efetuava sem pressa a inspeção ao “meu” DO-27 (3437) preparando o voo de regresso a Nampula, quando chegou um pedido de evacuação urgente. Havia vários feridos, resultado dum acidente grave na picada de Mecula para Macalange. Era preciso socorrer esse pessoal.
Os planos do regresso foram alterados de imediato.
Descolei para Mecula, onde aterrei cerca de uma hora mais tarde.
Os feridos ainda não tinham chegado, mas sabia-se pela tropa que os graves eram pelo menos três.
Após algum tempo de espera, como não houvesse notícias dos acidentados descolei na tentativa de os localizar e fazer uma estimativa do tempo que levariam a chegar à pista. Voei sobre a picada durante quase uma hora, mas não os vi.
Já tinha consumido duas horas de gasolina que, somadas às três necessárias para chegar a Nampula, totalizavam praticamente a autonomia do avião. Era preciso aguardar com calma e paciência.
Por volta das quinze horas ouvi o ruído do motor dum avião em aproximação. Momentos depois passou veloz rapando a pista em grande estilo. Era o 3449 tripulado pelo Alferes Simões Pinho e pelo Furriel Abreu Faria que vinham dar uma ajuda.
O número de feridos anunciado era maior do que aquele que um só avião podia transportar, por isso foi destacada para esta missão mais uma aeronave.
Sentados à sombra dum grande arbusto esperávamos em amena cavaqueira, conversa de encher como se diz na gíria, com o pessoal da segurança. Pelas dezassete horas soubemos que os feridos estavam finalmente a chegar.
Feridos graves eram três, transportados em dois Unimogs, incluindo dois cipaios e uma mulher. A acompanhá-los vinha também um Alferes médico que queria uma boleia para Marrupa, praticamente no caminho para Nampula. O desvio seria muito pequeno, afirmava ele com veemência. Com a G-3 ao ombro, bandoleira larga e a sua baixa estatura, faziam com que a coronha da arma ficasse a um palmo do chão. A esta figura absolutamente fora do contexto não era fácil negar boleia. Teimoso, decidido, muito pequeno, mal acabado e mal fardado, era no entanto uma simpatia de pessoa. Foi automaticamente aceite como parte do problema que tínhamos de resolver.
Às cinco e meia da tarde é quase noite naquela latitude. O Alferes Simões Pinho, que era o mais graduado dos três, determinou a distribuição dos feridos e do médico pelos aviões. Perguntou-me se não me importava de ser eu a aterrar em Marrupa.
Aeronaves prontas, fizemos finalmente um curto “briefing” ficando assente o seguinte:
No meu avião seguia a mulher muito ferida e o médico que largaria em Marrupa. O 3449 transportaria os outros dois feridos. Eu seria o primeiro a descolar e prosseguiria em velocidade reduzida até ser alcançado pela outra aeronave. Voaríamos em formação larga, à vista, uma vez que a noite assim o permitia. Aterraria em Marrupa para largar o médico que já conhecia os procedimentos para abandonar o avião nestas condições, enquanto o 3449 ficaria à vertical, voando em círculos, aguardando a minha descolagem. Seria fácil continuar a viagem como até aqui, em formação aberta.
Estava uma noite bastante escura, não havia luar e o céu pejado de estrelas, previa-se uma viagem sem problemas.
Descolei por volta das dezoito horas e tudo correu como esperado. Voámos à vista um do outro, comunicámos pelo rádio e meia hora depois tinha Marrupa à minha frente. Informei o Alferes Pinho que ia iniciar a descida e aterrar directo.
Chamei repetidamente o aeródromo na frequência habitual mas não obtive qualquer resposta. Prossegui em aproximação descendo por segurança com uma razão mais elevada do que o habitual, faróis acesos, a pista era já visível.
Foi nesta situação, em plena final longa e alta que vi aparecer pelo meu lado esquerdo as luzes de posição do outro avião, bem afastadas uma da outra (denunciando proximidade), que cruzou a minha trajetória de aproximação ligeiramente mais alta mas muito próximo da minha.
O que estava a ver era o 3449 a cruzar comigo, muito pranchado, de bojo exposto e em grande velocidade.
Logo que toquei na pista chamei-o, mas não obtive qualquer resposta.
Foi neste momento que o controle apareceu na frequência, pedindo a identificação do avião que tinha acabado de aterrar no seu aeródromo.
Larguei o médico como previsto e de seguida descolei entrando directo na rota para Nampula, que era praticamente no enfiamento da pista em que tinha descolado.
Pela rádio, fiz para o AM uma descrição resumida da situação e da missão que estávamos a efectuar, pedindo que continuassem a chamar o 3449.
Durante quase uma hora, ainda ouvi as chamadas sem resposta que o AM fazia insistentemente.
Cheguei a Nampula pouco depois das 21 horas, sobrevoando a cidade como era habitual naquele tempo e naquelas circunstâncias. Passados uns minutos a torre entrava na frequência, iluminando-me a pista e transmitindo as instruções habituais.
Após a aterragem rolei para a placa militar e assim que abri a porta do avião perguntou-me o Comandante da base algo surpreendido:

- Então Pinho, onde está o Vítor Silva?
- Então Vítor Silva, onde está o Pinho, será mais correcto meu Comandante, retorqui.

A minha “passageira” foi transferida para uma ambulância e dela nunca mais soube nada, o que era habitual.
Fui acompanhado pelos presentes para a sala de operações onde expliquei detalhadamente o que se tinha passado.
Os três ou quatro camaradas presentes no inicio da reunião eram quase uma dúzia por volta da meia noite.
Foi pedido à Beira o apoio dos PV-2 para participarem nas buscas que deviam ser iniciadas às primeiras horas da madrugada do dia seguinte.
Do AB5 (Nampula) saíram quatro ou cinco aviões, T6 e DO-27, com o mesmo objectivo.
Por volta das 11 horas foram localizados os destroços. Estavam 4 ou 5 kms à direita da pista de Marrupa para quem vem de Norte, tal como era a minha convicção e que tinha transmitido ao Tenente Carrilho. Foi com alguma facilidade que os localizou.
Nessa manhã fui autorizado a deslocar-me a Marrupa num DO-27 (3421).
A meu pedido transportaram-me aos destroços numa viatura do exército. O cenário não tinha descrição.
Tinha de ver aquilo para exorcizar os meus fantasmas.
Brutalmente chocado, fiz algumas fotografias que pela sua rudeza e despudor são impublicáveis.


Vítor Silva
Oeiras,19 de Agosto de 2011

16/08/11

753-Fumo no Lago Niassa


Em 1963 fui a Vila Cabral (AM 61) com um DO-27, numa missão de apoio logístico a pedido do Comando do Sector.
Havia poucos meses que tinha chegado a Moçambique, a amena temperatura que se fazia sentir graças aos 1400 metros de altitude do planalto criava um ambiente que me recordava a metrópole.
A noite dormia-se de um sono, e o aconchego do cobertor aumentava a ilusão de estar em Portugal.
A variedade dos produtos agrícolas próprios de climas temperados era enorme, batatas, morangos, verduras, completavam a ilusão, não sendo fácil acreditar que era em Moçambique onde me encontrava.
Depois deste apontamento que nem vem muito a propósito, vamos ao que interessa.

A organização dos voos e operações relacionadas - carga do avião, horários, definição de percursos etc.- era da responsabilidade dum Oficial de Operações, nomeado para o efeito pelo Comando do Sector.
O senhor Alferes desempenhava estas funções com tal desembaraço (vocábulo militar), intervindo em todas as áreas, que foi por pouco que não lhe entreguei o avião para ele executar por completo a missão. Na prática era só o que lhe faltava fazer, pilotar o DO-27.
O voo para Olivença, cerca de 200 km para Norte - informação do Senhor Alferes - seria um voo calmo e simples, pois a meteorologia previa um dia de bom tempo.
Poucos minutos após a descolagem já o lago Niassa era bem visível ao meu lado esquerdo. Parecia um enorme espelho azul, bem polido naquela manhã límpida e fresca. O recorte das margens montanhosas e abruptas, ou a imaginação dos meus 23 anos, levavam-me até à Suíça, onde nunca estivera mas que imaginava ser assim.
O voo decorreu sem percalços e com a máxima normalidade.
À chegada, o pessoal do destacamento militar, a autoridade civil e a população, manifestavam-se com entusiasmo. Era o avião que não viam há muito tempo, o correio tão ansiado, os géneros frescos tão necessários, o rádio novo para o posto administrativo, enfim um sem número de itens assaz importantes. Por razões diferentes de cada um, foi uma festa para nós todos.
Descarregado o avião e depois de uma alongada conversa prazenteira, descolei de regresso a Vila Cabral.
Resolvi fazer o percurso fora da rota habitual, perto do lago e a uma altitude que me permitisse gozar em pleno aquela paisagem grandiosa, quiçá única!...
Ainda não tinha voado quinze minutos nesta contemplação descontraída quando vejo para lá do meio do lago, perto do Malawi, três enormes cones negros invertidos, com o vértice ao nível da água e a base muito alta, parecendo-me acima dos três mil pés de altitude.
Só podia ser fumo, pensei. O lago Niassa com uma enorme profundidade ombreia com tantos outros grandes lagos Africanos, numa zona de “rift” tectónico que separa as placas africana e arábica, com actividade vulcânica constante. Estava explicado o fenómeno, concluí tranquilo.
O pessoal do AM 61 nunca tinha ouvido falar de tal coisa e o alferes, o tal oficial de operações, olhou-me até com um ar de desconfiança e enfado face à persistência na da minha descrição.
Por muito tempo não consegui deixar de pensar no que tinha visto e a cada dia que passava maiores eram as interrogações que se me punham. Cheguei a lamentar não ter violado a fronteira, para ir ver o que de facto era aquilo. Não voltei a ver este intrigante fenómeno das outras vezes que por ali ocasionalmente passei.
Fui pela primeira vez a Metangula em Agosto de 1965. Tinha passado já mais de um ano sobre aquela estranha visão dos cones de fumo invertidos sobre o lago. Era agora que eu iria finalmente tirar as minhas dúvidas! Após a aterragem e sem cerimónia abordei o europeu que mais perto estava do avião - um dos muitos mirones presentes pois a pista tinha sido recentemente inaugurada. Peguei-lhe pelo braço, arredei-o do grupo e perguntei-lhe: você já alguma vez aqui viu umas nuvens de fumo negro, muito altas sobre o lago? Sorriu-me e respondeu de pronto: saiba o Senhor Piloto que não é fumo nenhum, são mosquitos. Às vezes são tantos que até os motores da central param porque os filtros empapam. Não picam, são parecidos com as moscas do vinagre e a população faz caril com eles. Dizem que saem da boca de um peixe gigante, mas na realidade resultam da eclosão simultânea de milhões de óvulos.
Fiquei assim esclarecido! O mirone era um conhecido comerciante, o Senhor Adelino, que havia anos residia em Metangula e a partir de 1968 foi meu habitual cliente nos TAN, Transportes Aéreos do Niassa.

Vítor Silva

Oeiras, 15 de Agosto de 2011