O Voando em Moçambique é um pequeno tributo à História da Aviação em Moçambique. Grande parte dos seus arquivos desapareceram ou foram destruídos e o que deles resta, permanecem porventura silenciosos nas estantes de muitos dos seus protagonistas. A História é feita por todos aqueles que nela participaram. É a esses que aqui lançamos o nosso apelo, para que nos deixem o seu contributo real, pois de certo possuirão um espólio importante, para que a História dessa Aviação se não perca nos tempos e com ela todos os seus “heróis”. As gerações futuras de certo lhes agradecerão. Muitos desses verdadeiros heróis, ilustres aventureiros desconhecidos, souberam desafiar os perigos de toda a ordem, transportando pessoas e bens de primeira necessidade ou evacuando doentes, em condições meteorológicas adversas, quais “gloriosos malucos das máquinas voadoras”. Há que incentivar todos aqueles que ainda possuam dados e documentos que possam contribuir para que essa História se faça e se não extinga com eles, que os publiquem, ou que os cedam a organizações que para isso estejam vocacionadas. A nossa gratidão a todos aqueles que ao longo dos tempos se atreveram e tiveram a coragem de escrever as suas “estórias” e memórias sobre a sua aviação. Só assim a História da Aviação em Moçambique se fará verdadeiramente, pois nenhum trabalho deste género é suficientemente exaustivo e completo. A todos esses ilustres personagens do nosso passado recente que contra tudo e todos lutaram para que essa história se fizesse, a nossa humilde e sincera homenagem.

A eles dedicamos estas linhas.

José Vilhena e Maria Luísa Hingá

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Quem tiver fotos e/ou documentos sobre a Aviação em Moçambique e os queira ver publicados neste blogue, pode contactar-me pelo e-mail:lhinga@gmail.com

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24/10/11

759-MEMÓRIAS PARA UM “BUSH PILOT” - MEMÓRIA DÉCIMA QUINTA

DE INHAMINGA A LISBOA, PERDEU-SE UMA VIDA!

Aquele sábado amanhecera mais quente que o normal. A humidade, muito perto dos cem por cento, tornava os corpos suados pegajosos à roupa lavada que vestíramos logo pela manhã.
As nuvens já desenvolvidas com o nascer do dia, avolumavam-se para os lados da Serra da Gorongosa anunciando uma possível tormenta para o final do dia.
No nosso escritório dos TAM no aeroporto da Beira, num ambiente refrescado pelos aparelhos de ar condicionado que se afadigavam em tornar a atmosfera agradável, esperávamos a chegada dos clientes para os vários voos já programados.
Nessa manhã surgiram vários pedidos de fretamentos para Quelimane, o que era uma situação normal já que os lugares disponíveis nas carreiras da DETA, quer no Dakota quer no Friendeship, num total de pouco mais de sessenta passageiros, não respondiam aos pedidos de reservas solicitadas diariamente. Recordo que o Boeing 737 com uma capacidade próxima dos cem passageiros, adquirido pela transportadora moçambicana, só começou a operar em princípios de 1970.
Os passageiros, ou porque já não chegaram a tempo de adquirir com antecedência os bilhetes, ou porque, por qualquer motivo imprevisível perderam a ligação com a carreira da DETA, surgiam logo pela manhã no nosso escritório que se apressava sempre a solucionar os problemas individuais.
Foi o que aconteceu com o passageiro que transportei nesse dia até Quelimane: um engenheiro da Sena Sugar States nosso cliente habitual que perdera a ligação da carreira normal da DETA.
Voávamos já a cerca de trinta minutos da descolagem da Beira e a uns cinco mil pés de altitude quando ele num piscar de olho me pergunta:
- Primavera. Será que podemos ir lá abaixo (referia-se junto ao terreno) para vermos caça?
- Sabe engenheiro, nesta rota não há muito que se veja, tirando um ou outro crocodilo e umas quantas garças ... se fosse na habitual para Marromeu!

Ainda não vos havia revelado mas de certo já o imaginaram, que num ou noutro fretamento, satisfazíamos por vezes os pedidos de um passageiro mais interessado em ver a caça que abundava sobretudo nas rotas da Beira para o Luabo ou para Marromeu.
Na verdade, nas pequenas lagoas ou nos charcos que permaneciam após as cheias do rio Zambeze, que transbordando as suas margens inundavam vastas áreas das planícies ou tandos do Luabo e Marromeu, podíamos ver crocodilos, um ou outro hipopótamo solitário e sobretudo aves como garças, pelicanos e corvos marinhos.
Mas era sobretudo na orla da floresta, já em terreno mais seco que abundavam sobretudo as manadas de elefantes de búfalos e de bois-cavalos.
É claro que esta prática pouco ortodoxa de voo requeria uma discrição da parte do passageiro que de resto merecia antecipadamente a nossa confiança.

Mal poisara o avião na pista de Quelimane e quando me dirigia já para o estacionamento, a torre de controle contactou-me para me informar de um pedido urgente para a evacuação em maca, de um queimado grave, de Inhaminga para a Beira.
Tratava-se de um acidente decorrente da explosão do depósito de uma “geleira” a petróleo que queimara o rosto e toda a parte anterior do corpo de um jovem alferes do exército numa extensão de mais de setenta por cento do seu corpo.
De certo repararam que utilizei a palavra “geleira” para designar o que habitualmente se apelida de “frigorífico”.
Por isso, antes de continuar a narração daquele acidente permitam-me que explique esta aparente falta de conhecimento da língua portuguesa.

Nascido em Moçambique, mais propriamente em Lourenço Marques, desde cedo aprendi a usufruir os benefícios dos “gelados” para refrescar-me nos dias de calor que por lá se fazia sentir!
Naquele tempo em que eu era um “mufana” (e já lá vai tanto tempo!), para se conservarem frescos as bebidas ou os alimentos, utilizavam-se umas caixas de madeira forradas a folha-de-flandres onde se colocavam uma ou mais barras de gelo.
Estas barras de gelo eram compradas na “Fábrica Victoria” ou então, quando em pequenas quantidades, eram vendidas porta a porta num camião “Chevrolet” de cor amarela cujo motorista, o Sr. Penetra, anunciava com antecedência a sua chegada, com uma buzina que emitia um som rouco mas forte.
Ao ouvi-la, a criadagem corria para junto da caixa do camião cujo taipal traseiro se abria e expunha uma série de barras de gelo.
- faz favor ... quero um escudo de gelo! – pedia um.
- eu quero dois e quinhentos! - acrescentava outro.

À medida que recebia os pedidos, o ajudante do Sr. Penetra picava a superfície do gelo com um cinzel afiado de modo a satisfazer as quantidades solicitadas.
Era então aí que nós, os miúdos das redondezas, aguardando silenciosamente o momento exato, disputávamos conjuntamente com os criaditos mais novos os fragmentos de gelo que se espalhavam pela caixa do camião.
Com a água do gelo que se ia derretendo, limpávamos a areia e os fiapos das serapilheiras utilizadas para embrulhar aquelas barras e sorvíamos deleitados o fresco prazer daqueles gostosos momentos.

Com o passar dos anos aquelas pequenas caixas onde se conservava o gelo foram-se transformando e aumentando de tamanho até que finalmente se construíam armários de dimensões razoáveis onde se depositavam simultaneamente várias barras de gelo.
Precisamente porque continham gelo e nelas se colocavam as bebidas para serem consumidas muito frescas, passou-se a designar de “geleiras” estes conjuntos de armários, de modo que, quando qualquer um de nós pedia um copo de “água gelada”, referíamos sempre à água fresquinha que bebíamos, conservada fresca naquelas caixas.
Como curiosidade das ”geleiras”, acrescento que era frequente nos dias de festa encher-se uma banheira com barras de gelo onde se colocavam as bebidas para serem depois servidas “fresquinhas”.
Na verdade o gelo e as coisas geladas constituíram sempre uma atração para toda a gente sobretudo para os mais novos!
– Mãe compre-me um “ice cream”! – gritava o miúdo agarrado-se às saias da progenitora!

Ainda sobre o gelo e as coisas geladas, gostaria de partilhar convosco algo de interessante que ocorria quando nós, já mais crescidos, frequentávamos agora o nosso Liceu.
Sempre que, por volta do meio dia, ao soar da campainha junto à reitoria, cruzávamos o portão da entrada em alta gritaria de manifesta satisfação pelo fim de mais um dia de aulas, corríamos para um encontro com alguém muito especial que nos proporcionava momentos de particular contentamento.
Lá fora junto ao passeio fronteiro à entrada do liceu, já nos aguardava “o sócio”:
- Um homem negro, de rosto marcado por sinais deixadas pelo sarampo contraído na sua juventude, vestindo uma branca “cabaia” que lhe tapava o corpo até aos pés e a cabeça coberta por um “cofió” impecavelmente branco, apoiando-se no seu carrinho do “ice cream”, onde aquela hora da manhã já não restava nem um pedaço do gelado. Sobravam apenas pedaços de gelo misturados com sal, que esticava a sua duração sem os deixar derrete-se facilmente.
O “carrinho” de cor branca, pintado com sugestivos desenhos coloridos que despertavam incontidos apetites à miudagem, estava defendido dos raios escaldantes do Sol do meio dia por uma coberta de lona branca com uns folhos arredondados cuja sombra se projetava sobre a sua superfície.
E era ali que nós colocávamos as nossas pastas para recebermos depois, das mãos do “sócio”, os pedaços de gelo com fragmentos de sal, chupando e sorvendo o líquido fresquinho, enquanto empurrávamos alegremente o carrinho pelos longos declives da avenida 24 de Julho, minorando durante uns poucos quilómetros o trabalho do nosso amigo vendedor de gelados que lá na retaguarda fechava sorridente aquele cortejo jovial e ruidoso.

Tempos depois aquelas referidas “geleiras” foram substituídas por outras mais sofisticadas feitas de metal e plástico, que aproveitavam o calor da combustão do petróleo para conservarem os alimentos e para transformarem em gelo a água colocada em pequenas “cuvetes”.
Estas “geleiras” possuíam um depósito metálico na sua parte inferior que era abastecido com petróleo e se destinava a alimentar a chama de um pavio mergulhado naquele líquido combustível. O calor assim produzido fazia circular um gás que se expandia por um sistema de serpentinas e cujo arrefecimento se transmitia a uma câmara “frigorífica” onde se produzia depois o gelo.

Ora foi uma “geleira”, ou melhor, um “frigorífico” como o descrito trabalhando a petróleo, que provocou o acidente que me levou com muita urgência até Inhaminga.
O depósito, em vez de petróleo, teria sido indevidamente atestado com gasolina que, embora em pequena quantidade, foi suficiente para provocar uma explosão logo que o jovem alferes, ao riscar o fósforo para acender o pavio incendiou os gases libertados.
Foi tão violenta e repentina a explosão que destruiu a frágil cozinha e o combustível incendiado atingiu de imediato a face e toda a parte anterior do corpo provocando-lhe graves e dolorosas queimaduras.

Cheguei a Inhaminga em pouco mais de quarenta minutos e já me aguardavam na pista o médico e o enfermeiro.
O paciente estendido numa maca coberto com um lençol fino que o protegia dos raios inclementes do Sol, gemia de modo imperceptível e quando me abeirei dele, fixou-me com um olhar carregado de interrogações procurando uma qualquer reação minha.
Sem perda de tempo desmontamos os encostos dos bancos traseiro e dianteiro de maneira a acomodar a maca que foi colocada no espaço junto ao meu banco depois de ter ocupado o meu lugar aos comandos do avião, o já vosso conhecido “comanche” CR-AGJ.

- Sr. Primavera - alertara o médico num tom que denotava enorme preocupação sobre o estado do acidentado e de modo a não ser por ele ouvido - o nosso alferes foi sedado de modo a aliviá-lo das dores que o atormentam.
O seu estado geral está deveras fragilizado pelo que lhe peço que voe o mais baixo que lhe for possível pois temo que o coração deste jovem não aguente!

A acompanhar este acidentado viajou um sargento enfermeiro ajoelhado atrás do meu banco a que se segurou durante a descolagem e sempre que alguma turbulência lhe fazia perder o equilíbrio. A tempos regulares molhava com um líquido fresco os lábios ressequidos e inchados do jovem alferes.

Voamos cerca de quarenta e cinco minutos sobre a floresta aquecida pelos raios do Sol que no zénite aqueciam impiedosamente o ar em que nos deslocávamos provocando uma certa turbulência.
A cada movimento do avião os queixumes do meu passageiro aumentavam de intensidade o que me obrigava a olhá-lo impotente no alívio do seu sofrimento.

E naqueles longos minutos que mais me pareceram uma eternidade, sempre que desviava o meu olhar dos instrumentos era para olhar aquela cabeça deitada ali ao meu lado, coberta por uma cabeleira crestada pelas chamas de que não se conseguia perceber qual a sua verdadeira cor de tão negros e encarapinhados que ficaram os seus cabelos.
Só uns olhos raiados de um vermelho intenso me interrogavam num longo silêncio que só foi quebrado quando, já com o avião estacionado na placa, balbuciou num sussurrar mal perceptível:
- Senhor piloto ... acha que me salvo?
- Amigo. Conseguiu chegar aqui o que foi notável. Agora já está em mãos que irão tratar de si !

Retirada a maca do meu avião seguiu de imediato para o Boeing 707 da FAP que aguardava somente a chegada daquele passageiro para descolar com destino a Lisboa.
Ficara só no habitáculo do meu “Comanche”, extremamente pálido, quando ouvi uma voz feminina falar-me de mansinho:
- Senhor Primavera. Vá para casa ... vá descansar ... vejo pela sua cara que acaba de passar por muito ...

Uma semana depois aquela mesma voz que me confortara à chegada do meu voo de Inhaminga, anunciava-me agora numa voz dorida:

- Senhor Primavera o jovem alferes que evacuou de Inhaminga a semana passada não resistiu às graves queimaduras e acaba de falecer no hospital militar em Lisboa.


DE INHAMINGA A LISBOA, PERDEU-SE UMA VIDA!



Vila de Parede 15 de Outubro de 2011