O Voando em Moçambique é um pequeno tributo à História da Aviação em Moçambique. Grande parte dos seus arquivos desapareceram ou foram destruídos e o que deles resta, permanecem porventura silenciosos nas estantes de muitos dos seus protagonistas. A História é feita por todos aqueles que nela participaram. É a esses que aqui lançamos o nosso apelo, para que nos deixem o seu contributo real, pois de certo possuirão um espólio importante, para que a História dessa Aviação se não perca nos tempos e com ela todos os seus “heróis”. As gerações futuras de certo lhes agradecerão. Muitos desses verdadeiros heróis, ilustres aventureiros desconhecidos, souberam desafiar os perigos de toda a ordem, transportando pessoas e bens de primeira necessidade ou evacuando doentes, em condições meteorológicas adversas, quais “gloriosos malucos das máquinas voadoras”. Há que incentivar todos aqueles que ainda possuam dados e documentos que possam contribuir para que essa História se faça e se não extinga com eles, que os publiquem, ou que os cedam a organizações que para isso estejam vocacionadas. A nossa gratidão a todos aqueles que ao longo dos tempos se atreveram e tiveram a coragem de escrever as suas “estórias” e memórias sobre a sua aviação. Só assim a História da Aviação em Moçambique se fará verdadeiramente, pois nenhum trabalho deste género é suficientemente exaustivo e completo. A todos esses ilustres personagens do nosso passado recente que contra tudo e todos lutaram para que essa história se fizesse, a nossa humilde e sincera homenagem.

A eles dedicamos estas linhas.

José Vilhena e Maria Luísa Hingá

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25/01/13

799 - Cte. Timóteo Costa, 25 500 horas a voar.






In Diário de Notícias da Madeira - Mais - 20-01-2013
Ricardo Duarte Freitas

Timóteo Costa aprendeu a voar aos 17 anos e fez-se piloto nas pistas de terra batida de Moçambique, entregando correspondência nos quartéis militares. Aos 64 anos, com 47 anos de pilotagem, o comandante da SATA despede-se da aviação comercial na próxima terça-feira.

Era ainda um jovem franzino quando decidiu, em 1965, abandonar a sua terra natal, a Santa do Porto Moniz, e emigrar para África do Sul. O objectivo era claro, embora na altura secreto: escapar à tropa e evitar ir parar a um qualquer teatro de guerra nas antigas colónias. "A ideia era, como naquela altura, tentar ir para África do Sul de uma maneira ou de outra, porque o serviço militar assustava muita gente e, tal como eu, uns iam para França". Mas o destino levou-o até Moçambique. "Tinha lá um tio que me fez ver que essa ideia de tentar ir para África do Sul, por uma questão de fugir ao serviço militar, que não era o correcta e que eu devia mas era seguir uma vida normal como qualquer outra pessoa". Timóteo percebeu que podia fugir mas não podia se esconder e ficou por ali, na antiga capital Lourenço Marques (Maputo desde 1976).

Não tardou a encontrar uma oportunidade de trabalho, através de um conhecido do tio. A porta ao mundo da aviação foi-lhe aberta por um comandante da DETA (Companhia Aérea de Moçambique), cuja filha estava num hospital próximo do local de trabalho do tio. "Num belo dia, falando com ele, disse-me: olha, se tu quiseres, abriu agora um concurso para despachante de operações de voo e se tu quiseres concorrer...". Timóteo ficou entusiasmado, não percebia patavina daquilo. Mas, não lhe restava muito mais. Estava ali para arranjar trabalho em Moçambique. Senão, não lhe restava alternativa além de tentar entrar em África do Sul. "Olha como tu não percebes nada de aviões, tens de ir ao Aeroclube de Moçambique, lá em Lourenço Marques e dizes que precisas destes conhecimentos assim e assim e eles ensinam-te a voar nos aviões pequeninos", transmitiu-lhe o comandante. Timóteo aceitou o conselho e avançou, tinha então 17 anos.

A fasquia foi elevada quando assistia às aulas. Desafiaram-no a inscrever-se no curso de pilotos. "Epá, mas eu não tenho dinheiro para isso", respondeu. Mas para isso havia remédio. O jovem madeirense tinha as habilitações mínimas para ingressar no curso (correspondente ao actual 9.º ano) e menos de 21 anos. Cumpria os requisitos para beneficiar da comparticipação a fundo perdido do Estado. Tinha apenas de comprometer-se a servir, no final, na Força Aérea de Voluntários.

Frequentou o curso sem pagar nada e depois fez-se às pistas de terra batida do interior de Moçambique, distribuindo a correspondência postal e as encomendas entre os quartéis militares. "Era muito difícil fazer a distribuição da correspondência nesses locais. Eles faziam as pistas muito rudimentares junto aos quartéis e esses aviões pequeninos tinham de lá entregar", recorda.

Antonino Timóteo Gonçalves da Costa iniciou a sua vida profissional como co-piloto, aos 17 anos. Aos 18 fez o curso para instrutor e a 20 de Maio de 1966, obteve a primeira licença de piloto comercial. Seguiram-se três anos de serviço militar. Apesar de ter feito uma série de voos, optou por não ingressar na Força Aérea, voltando-se para o ramo do Exército. "Não quis a Força Aérea por uma simples razão: eu teria de cumprir seis anos. O que, para a minha vida profissional não serviam para nada. Ia voar aviões que não me diziam nada e corria determinados riscos", justifica.

Conclui os três anos no Exército e entrou para a DETA (o correspondente à TAP em Moçambique). Aos 24 anos, iniciou a carreira na aviação comercial. Lembra-se do seu primeiro voo como se fosse hoje e ainda guarda o fascínio de pilotar o 'Fokker F-27' (avião de duas hélices), entre Lourenço Marques e a cidade da Beira. Um ano depois, passou para o 'Boeing 737', considerado na altura a 'coqueluche' do fabricante norte-americano, seguindo-se o 'Boeing 707' (de quatro reactores).

A aventura pelos céus de Moçambique terminou com a chegada da independência, em 1975. Dois anos depois, fez as malas e trouxe a bagagem para o lugar de passageiro. "As condições não permitiam e vim para cá para a Madeira". Mas África voltou a reclamar a presença do piloto madeirense. Um ano depois foi voar para a TAAG - Linhas Aéreas de Angola, sempre na cadeira à esquerda do 'cockpit' de um 'Boeing 707', um avião de longo curso. "Foi um avião que voei durante 17 anos e foi aquele que eu gostei mais, que na altura era um avião do presidente dos Estados Unidos".

Não ficou mais tempo em Angola, porque em 1988, a LARE - Linhas Aéreas Regionais (uma companhia criada com os antigos aviões dos Açores e que veio substituir a TAP nas ligações entre Madeira e Porto Santo), endereçou-lhe um convite irrecusável para voar a partir da Madeira. "Eu já estava muitos anos fora da Madeira e, com a família cá, optei por vir", analisa. Timóteo Costa esteve um ano ao serviço da LARE.

A criação da 'Air Columbus' - uma companhia baseada na Região, que contava com capitais de empresários madeirenses, embora filial da dinamarquesa 'Sterling' - precisava da experiência do piloto madeirense. Timóteo Costa foi o rosto da pilotagem. Este no primeiro voo a partir da Madeira para os diversos cantos da Europa, comandando um 'Boeing 727' ao serviço da Air Columbus. Seguindo-se outros destinos onde a diáspora marcava presença: Canadá, EUA, escalas em Ponta Delgada, Boston, Providence, Montreal, Toronto. A pilotagem em voos de longo curso ao serviço da Air Columbus terminou em 1995, ao comando de um 757. O itinerário Lisboa-Boston-Ponta Delgada-Lisboa foi a última viagem ao serviço da companhia que acabou por falir, abrindo espaço ao ingresso de Timóteo Costa na SATA.

Foi convidado a formar a companhia aérea e a integrar a equipa técnica que iniciou a aquisição da frota. O seu primeiro avião foi um 'Boeing 737'. "Vimos um em Londres que não satisfazia muito e fomos a Bruxelas ver um que tinha a matrícula CSTGP, que acabou por iniciar esta SATA", revela. Durante muito tempo foi o primeiro e único aparelho da companhia. Hoje, a frota do Grupo SATA é composta por 14 aeronaves: 4 Airbus 310, 4 A-320 (SATA Internacional) e 4 'Bombardier' Q-400 e 2 Q-200 da SATA Air Açores.

O voo inaugural de Timóteo Costa ao serviço da SATA Internacional cumpriu-se na ligação Funchal-Viena, a bordo do tal 'Boeing 737' que trouxe de Bruxelas. Hoje, o aparelho que Timóteo mais voa é um 'Airbus 320', baptizado com o nome 'Pico', com base no Aeroporto da Madeira. Nos últimos 17 anos, já transportou milhares de passageiros de e para Inglaterra, França, Alemanha, Itália e, mais recentemente, em voos semanais para Oslo, Helsínquia, Copenhaga, Estocolmo.

O susto das gaivotas nos reactores
Um dos episódios mais marcantes na longa carreira de piloto ocorreu mesmo 'à porta de casa', não tem muito tempo. Timóteo Costa mal tinha descolado o A-320, na manhã daquele dia 20 de Junho de 2011, quando atropelou um manto de gaivotas que se enfiaram nos reactores, obrigando o voo a regressar à pista numa manobra de aterragem de emergência que não deseja repetir. O relato surge na pessoa do comandante. "Foi realmente muita sorte porque as condições eram muito adversas. Primeiro, pelo embate das gaivotas que rebentaram com os dois motores e que vibravam muito e eu não sabia quanto tempo é que tinha para os motores continuarem a aguentar essa vibração". Da primeira análise, à decisão, foi uma questão de segundos. "Descolei de Santa Cruz para Machico, levei com as gaivotas ali junto ao local onde existe um posto de bombeiros, quase no final da pista. Elas estavam lá. Umas vinte paradas no chão. Ninguém as viu e quando estou a rodar o avião, elas batem e tive que dar a volta de imediato e, dois minutos depois, já estava no chão. Não sabia na altura que a porta me tinha aberto, porque se eu soubesse ainda me assustaria mais, mas o avião está preparado para evitar determinadas coisas, porque essa porta em princípio arrancaria mas, felizmente, correu tudo bem e aterrámos em segurança".

Ver a morte em Moscovo
Os sobressaltos fazem parte da pilotagem. Em 40 anos de actividade na avião comercial e mais sete na pilotagem, não faltam histórias arrepiantes como aquela descolagem no gelo de Moscovo. "Devido às condições, temperaturas muito negativas e uma neve muito forte, ficamos sem indicações todas no avião, logo a seguir à descolagem, sem ver o chão, sem ver nada. E os aparelhos indicavam-me que estava a apontar ao chão", relata Timóteo Costa. "Eu tinha a sensação, em poucos segundos, até reagirmos, que estava a entrar pelo chão dentro e estava a ver a morte vir sem remédio, porque as velocidades caíram para um patamar que o avião não se aguentava no ar e, afinal, eram tudo indicações erradas por causa de uma parte da estática que criou gelo e tapou as indicações de velocidade".

Nestes casos, vale a experiência dos pilotos. "O motor estava a dar a força toda e a atitude do avião era a correcta". A altitude e a velocidade indicadas pelos aparelhos é que estavam erradas. "A velocidade a dizer que eu estava a cair e que o avião não se aguentava e o altímetro estava-me a dizer que vinha directo ao chão, quando não podia ser porque se o avião tinha um determinado grau de inclinação, com a força do motor ele tinha de estar a subir", analisa. E estava. Quando o A-320 saiu da camada de nevoeiro denso e da área de turbulência, percebeu que o voo estava a seguir no rota indicada e em segurança. No percurso seguinte, de Roma para Moscovo, serviu-se do radar militar.

Foi também na capital russa que Timóteo Costa experimentou a maior amplitude térmica entre uma descolagem e uma aterragem. Partiu de Luanda com uma agradável temperatura de 31 graus e fez-se à pista de Moscovo onde varria um vento gélido de -27. Uma diferença de 58 graus em poucas horas.

A 'gracinha' à namorada
A grande lição de vida a bordo de um avião, começou bem cedo, logo aos 18 anos, ainda mal tinha aprendido a voar. Timóteo estava em Moçambique a pilotar uma avioneta e "pensava que era um grande campeão" quando, "num belo dia", decidiu impressionar a namorada fazendo uma voo tangencial ao solo. "Eu já tinha sido avisado por uma das moças que andava por lá a namoricar: põe-te a pau que tu andas aí a fazer umas brincadeiras e a coisa pode correr mal". O jovem Timóteo reagia com gáudio e ia fazendo orelhas moucas.

"Em Moçambique havia aqueles grandes terrenos de cultura e, num belo dia, chego lá e estava tudo cortado, terrenos lavrados. E eu disse: é hoje que eu vou passar mais baixo do que a casa". E à porta da moradia lá estavam as duas irmãs, boquiabertas com a ousadia aérea rapaz. "E passei! Olhei para trás e vi elas a me acenarem, mas quando dei por elas tinha duas árvores à frente e bati com o trem na ponta das árvores, que eram uns chopos altos, e perdi o controlo. Disse para mim mesmo: já foste!".

Mas não tinha ainda chegado a hora de Timóteo. Valeu-lhe que o avião ganhou velocidade suficiente e sobrevoou um laranjal, permitindo-lhe regressar ao aeroporto. Desembarcou pálido e mudo e sem conseguir pronunciar uma palavra. "Eu vi a morte à frente porque eu perdi por completo o controlo do avião. Sorte é que ele ainda conseguir voar, mas isso são efeitos da loucura da idade... 18 anos...", relata hoje o comandante da SATA.

Aterrar de lado sobre uma roda
Mas é claro que o jovem, esse inventor de proezas, não aprendeu a lição. Aos 19 anos ensaiou uma acrobacia que lhe ia saindo bem cara. Apostou com um amigo em como conseguia aterrar sobre apenas uma roda do trem e percorrer a pista toda até ao fim. "Azar o meu que quando aterrei, devo ter batido um pedacinho mais forte", recorda. "A roda ao bater, abriu o trem, o amortecedor partiu e o avião fez-me 360 graus, bateu e virou", regista a cronologia do acidente em décimos de segundo.

O amigo, que seguiu no lugar de ocupante, não estava habituado àqueles voos tresloucados. "Eu cortei ainda os motores, esperei que aquilo fizesse 'Blum!' mas não fez e lá saímos a correr do avião e ele perdeu por completo o controlo", relata. O rapaz estava a sofrer um ataque de pânico, manifestando uma reacção de euforia descoordenada. "Os bombeiros tiveram de o agarrar e colocar dentro do carro porque este estava completamente afectado ao ver o avião voltado".

Ao longo da sua carreira de 47 anos na pilotagem de aviões, ultrapassou várias anomalias que, por uma razão ou outra, obrigaram a parar um dos motores em pleno voo. "Um dos aviões que eu tenho uma história mais complicada na aviação comercial foi um 737 novinho em folha que fui buscar à fábrica, nos Estados Unidos e que foi baptizado de 'Funchal'". Um dia, estava a fazer o voo Manchester-Funchal quando ao lado de Brest um dos motores, que nem dois meses tinha, rebentou durante o voo.

"Eu tive de pensar a modo o que haveria de fazer e acabei por voar de Brest só com um motor para Lisboa", revelou. "Não é tecnicamente o mais correcto, porque eu deveria ter aterrado no aeroporto mais próximo, mas inventamos uma história complicada e lá vim parar a Lisboa", sorri.

Fechar um ciclo com chave de ouro
O comandante Timóteo Costa fecha com chave de ouro 47 anos ao serviço da aviação. Na próxima terça-feira, fará o seu derradeiro, quando levantar o Airbus-320 da SATA Internacional, do aeroporto de Jersey com destino à Madeira. "Não se pode voar mais como piloto de aviação comercial, mesmo que a gente queira", diz o experiente comandante, fazendo-nos adivinhar que a sua vontade, aos 64 anos, seria mesmo continuar. A carta de aviação caduca e, ao fim de seis meses, tem de ser renovada. Os pilotos seniores têm de realizar trimestralmente: exames médicos, cumprir um número estabelecido de horas de voo e ainda testes em simuladores a comprovar a aptidão para actuar em situações de emergência.

Em 47 anos de serviço, Timóteo Costa soma 25.500 horas no ar, o que equivale a três anos a voar ininterruptamente, um número que poucos pilotos atingem, mesmo no topo de carreira. No Aeroporto da Madeira é mesmo recordista, tendo assinalado cerca de 8 mil aterragens na pista de Santa Catarina. Tendo alcançado o auge da carreira, não faltariam propostas para levar o experiente piloto madeirense para o Médio Oriente, para dar instrução aos pilotos nas companhias aéreas de países ricos como o Qatar.

Mas Timóteo Costa quer agora assentar os pés em terra e fazer-se aos céus por pura carolice, nos aviões do Aeroclube da Madeira que ajudou a crescer. Desde 1997, já deu instrução a perto de três dezenas de pilotos. Havia dias (aos domingos) que chegava a fazer 60 aterragens. A reportagem da MAIS embarcou a bordo do mono-motor 'Piper Cherokee C', num percurso pela costa sul.

O experiente comandante sai mas já tem um sucessor à altura. Pedro Birimbau, 24 anos, natural do Funchal, voa desde os 18 anos e tem sido o seu braço-direito, no lugar de co-piloto dos aparelhos da SATA. É, aliás, um produto da sua escola de formação. Timóteo vê em Pedro o jovem irreverente e talentoso que foi em Moçambique. Foi e continua a ser como pudemos comprovar em meia hora de voo. "É necessário ter medo para ter respeito. Eu sei que corro riscos porque a partir do momento em que não tivesse medo alguma coisa estaria mal", transmitiu-nos a lição de uma vida.

Ficha Técnica
Antonino Timóteo Gonçalves da Costa
Data de nascimento 24 de Janeiro de 1948
Naturalidade Santa, Porto Moniz
Estado civil Casado
Filhos 3 filhas e 1 filho
Horas de voo 25.500 (3 anos a voar ininterruptamente)
Aterragens no Aeroporto da Madeira 8.000
Tempo de serviço 47 anos, 40 dos quais na aviação comercial
1.º voo Lourenço Marques-Beira (Moçambique)
Último voo Funchal-Jersey-Funchal, na próxima terça-feira, 22 de Janeiro de 2013


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