À esquerda o monte Binga, o ponto mais alto de Moçambique com uma altitude de 2.436 m, está localizado no maciço montanhoso de Chimanimani, junto à fronteira com o Zimbabué, a oeste da cidade de Chimoio. À direita o monte Namúli situado a nordeste do Gurué, é a segunda mais alta elevação de Moçambique com 2.419 metros de altitude (como nota de interesse, acrescento que este monte foi descoberto pelo cônsul britânico Henry Edward O'Neill, no ano de 1849).
MEMÓRIA DECIMA SEXTA: ESPUNGABERA
Estávamos no inicio do verão quando as águas das chuvas começam a ensopar os solos que em breve, já saturados, não conseguirão absorver tão grande quantidade de água que irá permanecer por muito tempo à superfície formando imensos charcos.
Naquela manhã de Novembro recebemos um pedido de fretamento de Vila Pery, hoje cidade de Chimoio, para transporte de um cliente com destino à povoação de Espungabera.
Este nosso passageiro que eu conhecera havia mais de dez anos quando ele ainda trabalhava como topógrafo na Missão do Zambeze, deslocava-se de dois em dois meses de Vila Pery a Espungabera numa viatura automóvel, percorrendo um trajecto de cerca de duzentos quilómetros, o que conseguia efectuar com relativa facilidade, pese embora o incómodo que as estradas de terra batida traziam.
Com a vinda das primeiras chuvas aqueles terrenos argilosos transformavam-se a breve trecho em lamaçais que tornavam difícil, quando não impossível, o trânsito de viaturas normais ainda que com tracção às quatro rodas. Só mesmo tractores de lagarta conseguiam mover-se naqueles terrenos, já que as rodas motoras se deslocavam em cima das esteiras que se iam constantemente desenrolando à sua frente.
Descolei do aeródromo da Beira cerca das nove horas daquela manhã de Novembro em que uma atmosfera límpida, depois de três dias de copiosos aguaceiros, proporcionava uma visibilidade quase ilimitada que me permitia avistar, pouco tempo após a descolagem, os montes que se projectavam no horizonte mesmo por de trás de Vila Pery.
O voo durara cerca de uma hora em que percorrera uns duzentos quilómetros, a mesma distância que ainda teria de voar até Espungabera e que iniciaria logo após o embarque do passageiro que já me aguardava no aeródromo.
A rota a percorrer passava perto do maciço de Chimanimani, uma imensa montanha rochosa, como a que podem ver na foto que acompanha esta MEMÓRIA, onde está situado o Monte Binga com seus dois mil quatrocentos e trinta e seis metros de altura, o ponto mais alto do território de Moçambique, o que me obrigou a um desvio de cerca de onze quilómetros para leste do caminho pretendido de modo a evitar com segurança aquele enorme obstáculo.
O interessante desta história que aqui estou a partilhar convosco, é que ela se relaciona com os meus verdes anos de escola.
De acordo com o que aí nos ensinavam, a montanha mais alta de Moçambique situava-se nos Montes Namúli a norte do Gurué.
Só muito tempo depois, quando trabalhava já como agrimensor nos Serviços Geográficos e Cadastrais de Moçambique e com os contactos que fui estabelecendo com os colegas das brigadas técnicas de topografia e geodesia, empenhados em estudos com vista à elaboração das cartas do território moçambicano e ao traçado definitivo das fronteiras com os países limítrofes, é que actualizei muito dos meus conhecimentos da geografia de Moçambique e foi então que fiquei a conhecer a existência do Monte Binga.
Este período da minha juventude marcou-me profundamente pelo convivência directa que mantive com a natureza e com os povos que habitavam os mais íntimos lugares do vasto território de Moçambique porque, durante aquele período, a minha actividade profissional repartia-se por seis meses de trabalho de gabinete e seis meses de trabalho no campo.
Durante estes últimos, partilhava diariamente com os meus colegas agrimensores e com o pessoal auxiliar, acampamentos temporários de tendas de lona, de sanitários ao ar livre, de construções de pau a pique cobertas de capim, servindo de sala de jantar, sala de estar ou sala de trabalhos de cálculo, num íntimo contacto com a natureza selvagem do mato africano, durante os quais desenvolvia uma invulgar actividade recheada de inúmeras peripécias.
Curiosamente o conhecimento com o meu passageiro remontava ao tempo em que pela primeira vez tive contacto com um estranho equipamento altamente revolucionário como adiante veremos. Sucede que a brigada técnica a que ele pertencia não dispunha de tempo para testar o seu funcionamento e por isso, conhecendo o nosso interesse e a nossa disponibilidade, cederam-nos os telurómetros que dispunham para estudo do seu funcionamento.
Enquanto ele perdera desde então o contacto com este aparelho, eu em contrapartida, participei intensamente nos ensaios e nos testes que viabilizaram uma simplificada e intensa utilização desta máquina designada por "TELURÓMETRO", participação essa recheada de inúmeros imprevistos!
Não se assustem com o arrevesado deste estranho nome, que possivelmente alguns de vós só agora devem ter lido, porque vou esclarecer-vos de imediato o que é e para que serve afinal este instrumento.
Porém, antes de o fazer, gostaria de solicitar o vosso consentimento para me desviar por momentos da narrativa da viagem a Espungabera, com a finalidade de vos contar um episódio que recordei para o meu passageiro relacionado com o "telurómetro", que ilustra bem a alegria, a excelente boa disposição e a camaradagem que caracterizava a nossa actividade no campo.
O telurómetro, inventado pelo físico sul africano T.L. Wadley em 1956, é um telémetro electrónico que aproveitando certas ondas rádio elétricas, permite calcular com precisão distâncias à superfície da terra, em função do tempo que estas ondas levam a regressar ao ponto de partida.
Este instrumento, como podem ver na fotografia atrás incluída, era constituído basicamente por uma caixa de base quadrada com cerca de quarenta centímetros de lado e cinquenta centímetros de altura, onde se incorporavam um conjunto de instrumentos, interruptores e fichas de ligações externas.
Montada na parte da frente da caixa, uma calote esférica integrava uma antena que servia para a emissão e recepção das micro-ondas produzidas por um conjunto específico de cristais, que após um posterior tratamento matemático, permitiriam conhecer as distâncias entre os dois pontos onde se estacionavam estas caixas que designávamos então por “estações”.
Na parte posterior estavam dispostos vários instrumentos como um osciloscópio que media a diferença de fase entre a onda emitida e posteriormente devolvida, um miliamperímetro que possibilitava uma correcta orientação entre as estações e ainda um telefone que permitia a comunicação entre os operadores durante as medições.
Assim, para uma medição entre dois pontos, utilizavam-se dois telurómetros que se colocavam, ou melhor, se estacionavam naqueles pontos.
A uma hora combinada o operador que estava com a estação principal, a estação "mãe", emitia uma radiofrequência que era recebida e reemitida instantaneamente pela estação secundária.
A diferença de fase entre a onda emitida e a recebida, medidas no osciloscópio da estação "mãe", permitia-nos, através de uma interpretação particularmente desenvolvida, conhecer o tempo que a onda levara a percorrer a distância que separava as duas estações.
Sabendo que a velocidade de propagação da onda eletromagnética, de acordo com o físico e matemático britânico James Clark Maxwell, é idêntica à velocidade da luz no vácuo, ou seja aproximadamente 300.000 Km por segundo (299.792.458 metros por segundo para os nossos cômputos), permitia-nos determinar com uma precisão de milímetros, distâncias de muitos quilómetros medidas em pouco mais de quinze minutos, utilizando um trabalhoso cálculo que de modo algum pretendo aqui descrever (recordo que na altura não dispúnhamos ainda de computadores e mesmo as máquinas de calcular utilizadas nos trabalhos de campo eram manuais)!
Aliando sempre o trabalho à alegria e ao divertimento, atitude que adoptamos desde o inicio do estudo deste novo instrumento de medição, percorríamos de “Jeep” ou de barco as muitas e diferentes paisagens, com a finalidade de conhecer o comportamento das propagações das ondas electromagnéticas que diferiam substancialmente, conforme os trajectos se situassem sobre florestas, sobre o mar, sobre terrenos argilosos ou sobre terrenos arenosos.
Este trabalho de estudo e pesquisa foi realizado por uma equipa de técnicos dos Serviços Geográficos e Cadastrais de Moçambique ao longo dos anos de 1957 e 1958, assim que foram para tal disponibilizados os primeiros telurómetros concebidos em 1956.
Permitam-me aqui recordar com uma pontinha de brio que esta equipa era constituída pelo topógrafo principal, engenheiro Ventura, pelo topógrafo principal Gil Folgosa, pelo operador de fotogrametria aérea, o desenhador Marques e por mim, na altura topógrafo e operador de fotogrametria aérea.
Poderei afirmar que a nossa equipa foi pioneira, simultaneamente com os técnicos sul africanos, no estudo e desenvolvimento da aplicação regular do Telurómetro nos levantamentos topográficos com realce no apoio à fotogrametria aérea.
Vejamos agora como operava a nossa equipa.
No inicio de cada medição, logo que as duas estações estivessem orientadas, isto é apontadas uma à outra, o que se avaliava quando o ponteiro do miliamperímetro apresentava uma deflexão máxima, qualquer um de nós, antecipando-se à actuação do outro e utilizando um "spot" comercial de promoção ao detergente "OMO", (OMO lava mais branco!) muito em voga na rádio local, o Rádio Clube de Moçambique, o mais rápido, proferia ao telefone:
- Ena, a tua camisa está tão branca!
Ao que o outro um pouco desanimado por não se ter antecipado, respondia:
- Não admira, foi lavada com "OMO".
Após esta praxe preliminar, iniciava-se a medição que, como atrás vos disse, durava pouco mais de quinze minutos.
Entretanto o nosso voo prosseguia numa atmosfera que nos transmitia uma sensação de saudável bem-estar que nos convidava a olhar para a grandiosa paisagem que se desdobrava frente aos nossos olhos, interrompendo por instantes as recordações dos nossos tempos passados nas topografias.
Foi então que recordei para o meu passageiro, de entre as peripécias que vivi nos anos daquela actividade, uma que aconteceu nos longos meses em que participei nos testes de funcionamento do nosso já conhecido TELURÓMETRO.
- Naquela particular manhã, a nossa experiência consistia na medição da distância entre dois marcos geodésicos, um existente num pontão da capitania do porto de Lourenço Marques e o outro na Ponta Mahone na parte Sul da Baía do Espírito Santo, em frente à cidade de Lourenço Marques separados cerca de oito quilómetros.
Para o efeito desloquei-me numa lancha a motor, no “gasolina”, para o outro lado da baía, a Catembe, onde já me esperava um "Land Rover" que me transportou por uns quinze quilómetros de um estrada de terra batida, até ao marco geodésico da Ponta Mahone.
Depois de colocado o telurómetro em estação, aguardei a hora estabelecida para o nosso primeiro contacto do início da medição.
Assim que obtive o sinal de alinhamento das duas estações, e como era usual acontecer, antecipei-me à acção do meu colega e exclamei:
- Ena a tua camisa está tão branca!
Do outro lado do telefone respondeu-me um pesado silêncio acompanhado pelo balbuciar hesitante de uma observação:
- Desculpe, não compreendo !
- A tua camisa está tão branca! - insisti.
Um momento, reponderam do outro lado... seguiu-se um silêncio e depois a voz decidida do meu colega adiantando:
- OK... Vamos ao trabalho! ... depois falamos...
Intrigado continuei a medição.
Depois de terminada e já de regresso ao pontão da capitania onde estava a outra equipa, obtive finalmente um completo esclarecimento do que se havia passado.
Expressava-se com um brilho nos olhos o meu divertido colega:
- “Preparava-me para iniciar as medições, quando vi aproximar-se com um ar bastante interessado, vestindo um imaculado uniforme branco onde brilhavam os dourados das diversas condecorações, o almirante comandante do porto de Lourenço Marques que me sondou curioso, a razão de todo aquele estranho aparato.
- Senhor almirante, expliquei, estamos a ensaiar um instrumento que permite medir com uma precisão impressionante, a distância entre este marco geodésico onde nos encontramos e o outro existente na Ponta Mahone onde se encontra agora o meu colega Primavera que, não obstante os navios que se interpõem entre as nossa posições, pode de certo estar a observar-nos perfeitamente, quer ver?
E aproveitando o procedimento que adoptávamos no início de cada medição, passou-lhe intencionalmente para as mãos o telefone no preciso momento em que do outro lado, antecipando-me ao provável comentário do meu colega, eu exclamava como de costume:
- Ena a tua camisa está tão branca!
E continuava o meu colega deixando transparecer um sorriso malicioso:
- O almirante atónito, afastou o auscultador do telefone ao mesmo tempo que olhava para a sua camisa impecavelmente branca, num misto de espanto e incredibilidade. De seguida, sem conseguir disfarçar a perplexidade estampada no seu rosto, devolveu-me o equipamento e eu, sem me desmanchar, prossegui com ar muito compenetrado a medição como se nada de anormal tivesse acontecido”.
Ao ouvir a maquinação que o meu colega deliciadamente improvisara, o meu passageiro não conseguindo conter uma enorme vontade de rir, soltou uma vigorosa gargalhada que se fez ouvir por entre o ruidoso trepidar do motor que movimentava o hélice ali mesmo à nossa frente!
Entretanto havíamos já passado junto ao maciço de Chimanimani pelo que corrigi o rumo em cerca de dez graus para a direita em direcção a Espungabera onde chegaríamos dentro de uma meia hora.
A pista de Espungabera situada a uma pequena distância a Norte da povoação do mesmo nome, apresentava uma particularidade:
- Desenvolvia-se na encosta de um maciço montanhoso cuja pendente muito acentuada aumentava (ou melhor, subia) de leste para oeste, em direcção ao território do Zimbabué um pouco afastado e do outro lado da montanha.
Em virtude desta situação, as aeronaves só aterravam a subir e só descolavam a descer independentemente da direcção do vento, aproveitando a exagerada inclinação da pista.
Não vos tinha ainda dito, mas revelo-vos agora que aquela era a primeira vez que voava para Espungabera. De resto só naquela altura informei também o meu antigo colega!
Preveni-o que, por essa razão, iria fazer uma aproximação muito cuidada à pista de modo a conhecer todos os seus pormenores.
E quando me preparava já para aterrar, descobri que percorrera mais de metade do seu comprimento sem contudo ter identificado o seu fim porque a superfície da pista estava completamente coberta por uma altura apreciável de capim que o hélice cortava, qual ceifeira mecânica, abrindo caminho para a aterragem.
Sem hesitar remeti o motor abortando a aterragem e prosseguindo para novo circuito já precavido para as péssimas condições da pista e sobretudo para a inexistência de marcas limitativas.
Após a aterragem e depois de estacionado, abandonamos o avião para uma inspecção cuidada à pista onde acabáramos de poisar.
Foi então que o meu passageiro me perguntou num tom muito sério:
- Costumas proceder sempre desta maneira numa pista que utilizas pela primeira vez?
Na verdade esta fora a primeira vez que executara um procedimento normal para o qual havia sido treinado durante a minha aprendizagem e que consistia em abortar uma aterragem sempre que não tivesse como certa a sua execução em segurança.
- Sim, faço-o sempre nestas condições, adiantei eu sem querer alongar-me com mais explicações.
E voltei à minha aeronave para iniciar a viagem de regresso à Beira, agora sem alguém, um passageiro, um antigo companheiro com quem conversar.
Já depois de descolado e voando devidamente estabilizado num nível de voo confortável em direcção ao aeroporto da Beira, espreitei pela janela do lado esquerdo para uma vez mais contemplar o Monte Binga que se destacava dominante do maciço de Chimanimani!
VILA DE PAREDE 15 DE FEVEREIRO DE 2012
4 comentários:
Grato por mais esta memória de "Bush Pilot". Também fiz dezenas de voos como piloto da FAV 301, na distribuição de correio militar na rota Beira-Chibabava-Eespungabera-Vila Pery-Vila Gouveia-Beira aos comandos dos Piper Colts ou Tripacer e recordo-me bem da topografia que o Comte. Primavera aqui descreveu. Abraço
A minha humilde opinião sobre a tua "16 º memória":
1. Como teu habitual leitor mais uma vez me deliciaste.
2. Como Moçambicano permitiu-me recordar a minha terra.
3. Como leigo no teu anterior “métier”, achei-a muito interessante.
4. Como aviador soube-me a pouco, mas espero que na próxima “memória” possas versar mais sobre o tema e que tão bem sabes contar, na tua já longa carreira de piloto.
Obrigado Joaquim por não desistires de nos deleitar com as tuas “memórias”….
Há censura Pidesca?
Anónimo publiquei a sua pergunta para lhe poder responder.
Porque faz essa pergunta?
Os administradores da página estamos identificados ao contrário de si.
Cumprimentos
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