O Voando em Moçambique é um pequeno tributo à História da Aviação em Moçambique. Grande parte dos seus arquivos desapareceram ou foram destruídos e o que deles resta, permanecem porventura silenciosos nas estantes de muitos dos seus protagonistas. A História é feita por todos aqueles que nela participaram. É a esses que aqui lançamos o nosso apelo, para que nos deixem o seu contributo real, pois de certo possuirão um espólio importante, para que a História dessa Aviação se não perca nos tempos e com ela todos os seus “heróis”. As gerações futuras de certo lhes agradecerão. Muitos desses verdadeiros heróis, ilustres aventureiros desconhecidos, souberam desafiar os perigos de toda a ordem, transportando pessoas e bens de primeira necessidade ou evacuando doentes, em condições meteorológicas adversas, quais “gloriosos malucos das máquinas voadoras”. Há que incentivar todos aqueles que ainda possuam dados e documentos que possam contribuir para que essa História se faça e se não extinga com eles, que os publiquem, ou que os cedam a organizações que para isso estejam vocacionadas. A nossa gratidão a todos aqueles que ao longo dos tempos se atreveram e tiveram a coragem de escrever as suas “estórias” e memórias sobre a sua aviação. Só assim a História da Aviação em Moçambique se fará verdadeiramente, pois nenhum trabalho deste género é suficientemente exaustivo e completo. A todos esses ilustres personagens do nosso passado recente que contra tudo e todos lutaram para que essa história se fizesse, a nossa humilde e sincera homenagem.

A eles dedicamos estas linhas.

José Vilhena e Maria Luísa Hingá

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Quem tiver fotos e/ou documentos sobre a Aviação em Moçambique e os queira ver publicados neste blogue, pode contactar-me pelo e-mail:lhinga@gmail.com

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30/11/08

513-MEMÓRIAS PARA UM “BUSH PILOT” - Memória terceira


O autor no aeródromo de António Enes com o Eng. Trigo de Morais junto ao Comanche da TAM, CR-AGJ.

Memória Terceira:

Se bem se recordam, terminei a minha Memória Segunda, no momento em que, após a descolagem de Vila Cabral, já no rumo para Vila Junqueiro e a cerca de uns cinco mil pés sobre o terreno, se ouviu uma série de fortes impactos de projécteis, na porta do lado direito do avião, junto ao passageiro – ra-ta-ta-ta-ta – que, assustado, se atirou de imediato para a esquerda, para o meu lado.
E contava eu então que o meu passageiro me olhou apavorado, lívido, mais branco do que a cor branca do seu fato impecavelmente engomado, e perguntou:
- Ouviu?
- Ouvi, respondi.
- Seria?
- Talvez, adiantei.
- E agora?
- Bem, agora só nos resta ficar atentos ao comportamento do avião, principalmente do motor, vigiar o nível do combustível, as temperaturas do óleo e das cabeças dos cilindros.
Se tudo se mantiver normal, tanto melhor, pensava eu em voz alta!
E continuava:
- No caso de se verificar qualquer anormalidade, teremos de ponderar, de acordo com a gravidade da situação, qual das duas decisões iremos adoptar …

Deixei que se fizesse um silêncio na explicação do meu pensamento, e concluí:
- … Se prosseguir a viagem para o destino, … se regressar a Vila Cabral, com a possibilidade, ainda que remota, de voltar a ser atingido na aproximação ao aeródromo.

Acreditem que não foi nada fácil esconder do passageiro as preocupações e as dúvidas que naquele momento me assaltavam.
Tudo parecia indicar que algo atingira por quatro vezes, a fuselagem do avião na parte inferior do lado direito, ainda que não tivesse penetrado no habitáculo. Possivelmente teria sido atingida a asa direita da aeronave o que acarretaria prováveis complicações no funcionamento do trem de aterragem.
Com todo este cenário sucedendo-se veloz no meu pensamento, examinava com redobrada atenção, os instrumentos do motor, os indicadores de combustível, atento a qualquer anomalia.
A determinada altura os meus olhos descobriram algo que num lampejo me conduziu à explicação, ou melhor, ao conhecimento do que se passara.
E o que eu vira fora precisamente uma pequena fresta na porta do lado do passageiro, iluminada pela luz do Sol, que àquela hora da manhã espreitava muito abaixo do avião.
Sigamos a minha dedução, identificando toda a movimentação efectuada, desde o embarque dos ocupantes, até ao momento em que ouvi os impactos na fuselagem:
- A única porta de acesso ao habitáculo deste avião, era a porta do lado direito, pelo que, a primeira pessoa a entrar para os bancos da frente era sempre o piloto comandante. Só depois de devidamente instalado, entrava o passageiro que, após ter apertado o cinto de segurança, fechava a porta.
- Só que a porta deste avião nem sempre se fechava completamente, estacando por vezes na primeira posição do trinco, o que originava uma pequena fresta que, à medida que a velocidade aumentava durante a descolagem, dilatava o seu tamanho em pelo menos dois centímetros.

Ora notei então, que a aba do casaco do meu passageiro, começava aos poucos a ser de novo puxada para aquela fresta, pela sucção do fluxo do ar junto à porta.
Adivinhando o que se iria de seguida passar, segurei-lhe o braço e disse-lhe com calma que ficasse quieto e que não se assustasse nem se mexesse em caso algum com o que iria acontecer.
E de repente ouviram-se os tais “impactos” dos projécteis junto à porta, -ra-ta-ta-ta-ta …ta-ta…, que iam aumentando de intensidade à medida que a aba do casaco saía pela fresta!
Um sorriso iluminou o rosto levemente pálido do meu passageiro:
- Que grande susto! Ainda bem que foi só um susto …
E riu.
E rimos de satisfação.
Já recuperados da enorme tensão daqueles momentos por que acabáramos de passar, prosseguimos descansadamente o nosso voo para Vila Junqueiro.

A pista de Vila Junqueiro, na região do Gurué, situa-se junto a um maciço montanhoso onde se encontra um dos pontos mais altos de Moçambique, o Monte Namúli, com os seus imponentes 2.419 m de altura.
A sua base, está coberta por um manto verde de pequenas folhas de um arbusto com cerca de um metro de altura, cujas folhas em infusão produzem a agradável bebida conhecida por chá, manto este que faz lembrar “uma plantação de manjericos gigantes”, como escreveu o comandante Miguel Faria Peixoto (o Faria do Gurué), no seu livro “Os Sinos de São Bento”, ao referir-se às palavras do Cardeal Cerejeira quando da visita ao Norte de Moçambique.

Como era o meu primeiro voo para aquela pista, cheguei bastante alto, a uns oito mil pés de altura. Depois de devidamente reconhecida a vila e a pista de aterragem, iniciei uma descida lenta para a aproximação final. E quando já chegava ao local de estacionamento, no fim da pista e me preparava para sair do avião, aproximou-se uma bela senhora que com um largo sorriso comentou:
- Logo vi que se tratava de um novato aqui pelo Gurué !!!

E foi assim que conheci a D. Lúcia, mulher do Peixoto Faria que com a franqueza e o à vontade das pessoas que, no mato, fora do bulício das cidades, convivem directamente com a natureza, me acolheu no círculo dos seus Amigos:
- Trata-me por Lu acrescentou ela!

Já em amena cavaqueira, debaixo dum alpendre de madeira entre um e outro gole de uma cerveja bem “geladinha”, dizia-me D. Lúcia que era simultaneamente a directora do aeródromo, o capataz das obras, a despachante das aeronaves e a gerente da pensão que acolhia até uma meia dúzia de hóspedes:
- Estranhaste como adivinhei que és um maçarico nestas coisas das pistas do mato. Vais saber porquê, quando logo vires o Faria aqui chegar!

E assim foi:
Com o avizinhar do fim da tarde, a temperatura descia fazendo-nos sentir pelas costas suadas um leve arrepio. Lentamente, uma ténue cortina de humidade descia pelas encostas das elevações vizinhas, fazendo diminuir a visibilidade à medida que se ia aos poucos condensando!
-Será que o Faria chega antes do nevoeiro? – “perguntei aos meus botões”.

Como que adivinhando o meu pensamento e quando já mal se divisavam os telhados das casas mais altas, ouviu-se o roncar dos dois motores do Aztec, que numa rasante ao alpendre onde o aguardávamos sentados, anunciou ruidosamente a sua próxima chegada.
Num procedimento já muitas vezes executado, D. Lúcia, percorreu rapidamente a pista no seu Land Rover, acompanhada de um ajudante, que acendia os candeeiros de petróleo, antecipadamente dispostos nas bermas, assinalando o local para a aterragem.
Ele ali estava, o Faria - sorridente, feliz, embora cansado, após mais um dia a voar pelos céus de Moçambique.

Voltei deste modo, a ser mais uma vez confrontado com um comportamento que contrariava todas as regras de segurança que me haviam sido incutidas, durante a aprendizagem do voo, nas aulas de pilotagem. Comportamentos estes que eu não hesitava em classificar de procedimentos irresponsáveis, alheios aos perigos a que se expunham com semelhantes tipos de voo.
Só muito mais tarde pude descobrir a satisfação de poder evacuar um doente ou acidentado, do meio do mato, utilizando perigosamente, por vezes em plena noite sem luar, uma estrada no meio de uma povoação, ou uma pista de areia numa praia, na maré baixa, permitindo que ele pudesse sobreviver com o recurso a meios médicos que só num hospital distante poderia usufruir.
É certo que as condições deste tipo de voo conduzem muitas vezes a situações de perigo. Contudo, estas condições são por seu lado compensadas, por um estilo de vida descontraído e por vezes romântico, intensamente gratificado com a beleza dos elementos naturais, e sobretudo, com o grato contacto com os passageiros e com as populações.

Não foi este o meu entendimento quando efectuava o meu primeiro serviço nos TAM, com destino ao Luabo, no início da minha vida de piloto profissional, com uma modesta experiência de umas meras 300 horas de voo.
O Luabo era uma pequena povoação situada na margem esquerda do grande Rio Zambeze, quase exclusivamente habitada pelos funcionários da Sena Sugar States, uma concessionária de um extensíssimo território, devotado à plantação da cana sacarina, que era depois transformada em açúcar na respectiva fábrica.
Possuía uma pista em areia, a nascente da povoação, junto ao rio e separada dele por uma fiada de uns fabulosos eucaliptos que a delimitavam a Sul.
Voava eu, dizia, com destino ao Luabo, quando me apercebi de um manto branco de um nevoeiro que cobria as margens do rio numa largura de umas 50 milhas, estendendo-se até ao delta do Zambeze e cobrindo as povoações do Luabo, Marromeu, Chinde, bem como as respectivas pistas.
À medida que me aproximava da zona coberta de nevoeiro, sintonizei a frequência de 123.45, normalmente utilizada nas pistas sem controlo de rádio, para nos comunicarmos com as aeronaves do tráfego presente.
E inesperadamente oiço uma voz que anunciava:
-Borrego!
Acompanhando espantadíssimo as mensagens ouvidas, vejo surgir ao longe, emergindo do manto leitoso do nevoeiro, uma aeronave, logo seguida de outra mensagem:
-Vou tentar nova descida.
E seguiu - se outra:
- Já estou no chão … O nevoeiro está agora 300 pés sobre a pista…

Dispenso-me de vos falar da frustração que senti pela incapacidade de actuar do mesmo modo como os meus colegas o fizeram, e ao mesmo tempo também, do medo de, ao tentar fazê-lo, me estatelar contra o tronco gigantesco de um eucalipto, ou de me enfiar pelo leito do rio!!! … Jamais cometeria tal irreflectida loucura!
E decidi-me por alternar rumando ao Chinde, a cerca de uns 10 minutos de voo do Luabo, onde me parecia que o nevoeiro terminava…

Poderia manter por muito tempo aquela minha ajuizada decisão? E até quando?
Isso é o que veremos no próximo PorDentro. Até lá …




J. Primavera

1 comentário:

olimpiamorais disse...

O meu agradecimento eterno aos Comtes.Vilhena e Primavera, por neste blog da Aviação em Moçambique, terem falado do meu Tio Miguel Faria Peixoto e sua mulher Lúcia Peixoto. Ambos eram fantásticos, grandes pessoas de grandes qualidades que mta saudade deixaram. A Tia faleceu em 2003 e o m Tio em 2004. Ele escreveu o livro Por Quem Os Sinos Dobram e lá conta toda a sua vida, que só a palavra VOAR, VOAR desvenda tudo. Um grande abraço aos dois e parabéns por tudo quanto têm escrito a respeito dos Heróis da Aviação, q tb conheci. Ao Cmte Primavera, lembro-lhe que fui colega da sua mulher Fátima no BNU. Chamo-me Olímpia Morais, mais conhecida por Bébé.