O Voando em Moçambique é um pequeno tributo à História da Aviação em Moçambique. Grande parte dos seus arquivos desapareceram ou foram destruídos e o que deles resta, permanecem porventura silenciosos nas estantes de muitos dos seus protagonistas. A História é feita por todos aqueles que nela participaram. É a esses que aqui lançamos o nosso apelo, para que nos deixem o seu contributo real, pois de certo possuirão um espólio importante, para que a História dessa Aviação se não perca nos tempos e com ela todos os seus “heróis”. As gerações futuras de certo lhes agradecerão. Muitos desses verdadeiros heróis, ilustres aventureiros desconhecidos, souberam desafiar os perigos de toda a ordem, transportando pessoas e bens de primeira necessidade ou evacuando doentes, em condições meteorológicas adversas, quais “gloriosos malucos das máquinas voadoras”. Há que incentivar todos aqueles que ainda possuam dados e documentos que possam contribuir para que essa História se faça e se não extinga com eles, que os publiquem, ou que os cedam a organizações que para isso estejam vocacionadas. A nossa gratidão a todos aqueles que ao longo dos tempos se atreveram e tiveram a coragem de escrever as suas “estórias” e memórias sobre a sua aviação. Só assim a História da Aviação em Moçambique se fará verdadeiramente, pois nenhum trabalho deste género é suficientemente exaustivo e completo. A todos esses ilustres personagens do nosso passado recente que contra tudo e todos lutaram para que essa história se fizesse, a nossa humilde e sincera homenagem.

A eles dedicamos estas linhas.

José Vilhena e Maria Luísa Hingá

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Quem tiver fotos e/ou documentos sobre a Aviação em Moçambique e os queira ver publicados neste blogue, pode contactar-me pelo e-mail:lhinga@gmail.com

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Por motivos alheios algumas das imagens não abrem no tamanho original. Nesse caso podem selecionar “abrir imagem num novo separador” ou “Guardar imagem como…”.

30/11/08

512-MEMÓRIAS PARA UM “BUSH PILOT” - Memória segunda


Fotografia da sala de pilotos dos TAM. Da esquerda para a direita: João Quental, Janico Barreto, Calrão.



Memória segunda:

Antes de iniciar esta “memória” cabe-me fazer aqui duas correcções ao texto da “memória primeira”:
- O nome do meu colega e Amigo que me desafiou a que o acompanhasse a um safari à Namíbia, é João Sacôto e não “Sá Couto” como ali escrevi;
- As quedas do rio Zambeze, conhecidas pelas cataratas Vitoria, situam-se, no
Zimbabwe (antiga Rodésia do Sul), na fronteira com a Zâmbia, (antiga Rodésia do Norte), mais precisamente no Parque Nacional das Cataratas Vitória, que em conjunto com o Parque Nacional de Mosi-oa-Tunya na Zâmbia, foram inscritos pela UNESCO em 1989 na lista dos locais Património da Humanidade.

Concluídas estas pertinentes rectificações, continuemos agora com a nossa “memória segunda”.

Se bem se recordam, terminei a minha primeira “Memória”, no dia em que o meu patrão, Jorge Guerra, entrando pela saleta onde se reuniam os pilotos dos TAM em amena cavaqueira, entre um e outro cigarrito (danoso vício), enquanto aguardavam a chamada para qualquer serviço de voo, olha para mim e diz:
- Primavera prepare-se para ir comigo, amanhã, domingo, a Salisbury.

Antes de continuar com o relato de mais esta memória, sinto que vos devo, ainda que curta, mais uma explicação.
“TAM (Táxi Aéreo de Moçambique), era a sigla que designava o nome de uma empresa de táxis aéreos, sediada na cidade da Beira, propriedade do piloto Jorge Guerra e de sua mulher, D. Orquídea Guerra, que ao longo de várias décadas serviu com eficiência e segurança, particularmente as populações do de um extenso território que se distribuía desde o rio Save, a Sul e o rio Zambeze a Norte, onde a escassez de meios de comunicações obrigavam à utilização frequente do avião. Já não falando das situações de cheias dos rios Save, Buzi e Zambeze, em que a frota dos TAM além de outras, era também usada quer para suprir os meios humanitários de socorro às populações, como o transporte de víveres e de medicamentos, quer para o transporte de pessoas e correio, quer ainda a para a evacuação de feridos ou de doentes”.
Os escritórios dos TAM no aeroporto da Manga, na cidade da Beira, eram constituídos por vários serviços, distribuídos por uma série de pequenas instalações, uma das quais, com especial relevância para nós, era a sala de pilotos, onde no momento em que iniciei esta memória, estávamos reunidos, o Calrão, o Jenico Barreto, o João Quental e eu, pelo que perguntei admirado:

- Porquê irem dois pilotos nesse voo, e desses dois, logo eu?
- Bem, é que você nunca lá foi. Além disso, convêm a quem vá pela primeira vez fazer-se acompanhar por outro colega conhecedor do aeroporto, tanto mais que a terminologia do controle de Salisbury é particularmente difícil até mesmo para quem, como você, fale bem inglês!

Bem, convenhamos que a conversa era outra!
Bom homem, o meu Amigo Jorge Guerra era conhecido pelo “patinhas”, por duas razões:
- Uma delas, porque tinha um pequeno defeito num dos pés, que o obrigava a um leve coxear que lembrava o andar dum pato;
- A outra razão, porque era o autêntico “tio patinhas”, aquele que conhecemos da “família do pato Donaldo”, dos desenhos animados da Walt Disney – afinal não é no poupar que está o ganho?

Ora chegavam nessa tarde a Salisbury, vindos de Londres no Comet da BOAC, dois clientes (gente importante de negócios), que deveriam ser transportados, ainda nesse mesmo dia, para a cidade da Beira.
O avião cujo fretamento seria o mais barato, dentro duma categoria aceitável, correspondia ao Comanche (para quem se lembre, era um mono motor de asa baixa, silenciosamente veloz, com um habitáculo bastante cómodo e com um linhas exteriores bem concebidas), avião a que eu já tinha satisfeito todos os testes propostos pelo patrão para a sua operação.
Assim, prevendo a circunstância de um possível atraso na chegada do “Comet”, o que se verificou na realidade, o Jorge Guerra, aproveitando a minha qualificação de voo por instrumentos, queria fazer a viagem de regresso já em pleno período nocturno.
Só que o tiro saiu-lhe pela culatra – ele não sabia, ou não se lembrava, que na região AFI não eram autorizados, em circunstâncias normais, voos comerciais de transporte de passageiros “em mono motores”, durante o período nocturno. Como resultado desta determinação, só saímos no dia seguinte com destino à cidade da Beira.

Mas, quando iniciei o tema desta “MEMÓRIA”, tinha como intenção primordial, salientar que o conhecimento da topografia do terreno a sobrevoar, é o atributo essencial de um verdadeiro bush pilot, porque lhe confere, como atrás me referi, um sentido de orientação de autêntico pombo-correio.
Para mim, mero “aprendiz de feiticeiro”, de modo algum poderia confiar nessas qualidades ou dons como que lhe queiram chamar e tal como os meus companheiros de voo, cuidei de me equipar com todas as informações que me permitissem voar para Salisbury.

Ora, caso curiosamente original, não obstante a frota dos TAM ser constituída por um número razoável de aeronaves (dois Cessna 180, um Cessna 185, dois Comanches, um Cherokee Six, um Appache 150, um Twin Comanche, um Aztec), cabia aos mono motores uma utilização continuada, pelo que a maior parte das vezes não sobrava tempo para se proceder a verificações de “menor importância”, como por exemplo, a compensação das bússolas que, como toda a restante manutenção dos aviões, eram efectuadas pela empresa de manutenção “associada” dos TAM.
Assim e para os aviões mais utilizados, cada um cada um de nós, sempre que voando em dias de boa visibilidade, pudéssemos identificar o caminho para o destino, anotávamos o respectivo rumo da bússola (procedendo de modo idêntico para o regresso), elaborando tabelas para cada avião e para os destinos mais frequentemente utilizados.
Na sequência deste procedimento era amiudado ouvirem-se diálogos como este, na frequência 123.45:

- Primas, tens contigo a tabela do AIZ?
- Afirmativo.
- Qual é o rumo para o Mucheve?
- 170º.
- OK e o regresso?
- 025º !!!

Ao atender à ordem do patrão para o acompanhar a Salisbury, tratei de preparar o voo de modo a cumprir a missão em completa segurança, munindo-me para o efeito com as cartas necessárias, dado que não constava das minhas tabelas do GJ, o rumo de bússola para aquele aeroporto.
E, quando naquela manhã de sábado, com o Jorge Guerra aos comandos nos preparávamos para descolar, olhando para a bússola, registei espantado que, em vez dos iniciais 270º obtido da carta, a agulha apontava para 220º!
Atingimos em breve a altitude de cruzeiro prosseguindo o nosso voo, rasgando o céu límpido de um lindo dia do mês de Julho, e para minha admiração, passamos praticamente à vertical do nosso primeiro ponto de rota, junto a Vila Pery, e daí em diante até ao destino, sem qualquer hesitação ou observação, foram cumpridos todos os procedimentos de reporte com uma precisão de assombrar. Entretanto nada do que a bússola indicava, correspondia aquilo que eu esperava encontrar.

Forçados, pelos Regulamentos ICAO, respeitantes à Região AFI, a adiar a nossa partida para o dia seguinte, e depois de uma noite bem passada num modesto hotel da cidade de Salisbury (o preço do fretamento não possibilitava melhores acomodações), regressamos ao aeroporto da Manga na cidade da Beira, com os britânicos passageiros.

Porque teria de iniciar, na segunda-feira seguinte, um longo circuito naquele mesmo Comanche, em que seriam escaladas uma série de pistas e aeródromos no Norte de Moçambique, pedi ao Meirinho, o sócio da TAM na empresa de manutenção, que procedesse logo que chegássemos à Beira, à urgente compensação da respectiva bússola.
Conforme previra, os erros lidos nas diversas proas excederam todos os valores razoavelmente aceitáveis, com especial relevo para proa Este-Oeste, em que o desvio encontrado era muito próximo dos 90º!
Com a máquina em condições, o que já me deixava confiante no êxito do voo, descolei com o único passageiro, um engenheiro administrador da fábrica de cerveja MacMahon - uma bebida loira e leve, que no final dum voo, refrescava com prazer, tanto o piloto como os passageiros descidos daquela máquina, de janelas e para brisas de amplas dimensões, que permitiam que o Sol entrasse a rodos, aquecendo tudo e todos!
Este passageiro, se não me atraiçoa a memória, era o filho do engenheiro Trigo de Morais, responsável pelo projecto da barragem do rio Limpopo, perto do Xai-Xai, e mostrava-se bastante interessado com tudo o que íamos sobrevoando, mantendo comigo um agradável diálogo durante todo o voo, contrariamente ao que acontecia com a maioria dos outros passageiros!

Já no terceiro dia da nossa viagem, descolamos do Aeroporto de Vila Cabral situado a cerca de 1400 metros de altitude, num imenso planalto sobranceiro ao imponente Lago Niassa que se estende a perder de vista para Norte em direcção à Tanzânia, iniciando um procedimento de saída excepcional que havia sido recentemente implementado por se ter verificado uma certa actividade de um grupo armado, da Frelimo.
Este procedimento destinado a acautelar a segurança das aeronaves em voo junto ao aeroporto, consistia na subida obrigatória, em espera, sobre a área do Aeroporto de Vila Cabral até ser atingido um nível de segurança, após o que se poderia prosseguir no rumo em direcção ao destino.
Havia já executado a subida e rumava finalmente em direcção à pista de Vila Junqueiro, no sopé dos Montes Namúli, na região do Gurué conhecida pelo cultivo do seu aromático chá, quando a cerca de uns cinco mil pés sobre o terreno se ouviu uma série de fortes impactos de projécteis, na porta do lado direito do avião, junto ao passageiro – ra-ta-ta-ta – que assustado, se atirou de imediato para a esquerda, para o meu lado.
Olhou-me assustado, lívido, mais branco do que a cor branca do seu fato impecavelmente engomado, e perguntou:

- Ouviu?
- Ouvi, respondi.
- Seria?
- Talvez, adiantei.
- E agora?

Mas isso só o saberá no próximo PORDENTRO…até lá…









J. Primavera

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