O Grande
Susto
Quarta-feira 15 de Abril de 1979, exatamente 4 anos e 51 dias após a
independência de Moçambique (25 de Junho de 1975).
Foi um voo requisitado pelo Delegado da Aeronáutica Civil de Tete,
onde o avião tinha a sua base. Era um bimotor Britten-Norman BN-2A-8 Islander com
a matrícula C9-APQ (ex. CR-APQ).
O voo seria Tete / Fíngoe / Tete. No Fíngoe encontravam-se os
passageiros que embarcaram no avião: 2 cavalheiros, 1 senhora e a sua filhita
que não teria mas de 18 meses de idade.
A rota Tete / Fíngoe / Tete passa à vertical da grande barragem de
Cahora Bassa e da cidadezinha do Songo que assiste o complexo da barragem.
No regresso que seria Fíngoe / Tete o voo terminou com uma aterragem
de emergência dramática na pista do Songo.
Quando o avião sobrevoava Cahora Bassa a 7.500 pés de altitude, cerca
de 4.700 pés sobre o terreno, o controlador do Songo disse-me algo que não
entendi. Pedi-lhe que repetisse a mensagem, a “resposta” foi uma violenta
explosão cujo clarão se refletiu nas fendas do pedestal ou caixa onde correm as
manetes do gás, passo dos hélices e da mistura do combustível, dando a falsa
impressão que algo teria estoirado dentro daquela caixa. Foi uma impressão de
breves segundos. Quando olhei pelas janelas vejo o fogo na asa direita, o fogo
todo “esticado” para trás devido à deslocação do avião. A base do fogo de cor
laranja pálido, a parte posterior do mesmo azul pálido, quase a confundir-se
com o azul do céu. Um espetáculo assustador!
Percebi de imediato que tinha sido atingido por uma antiaérea e que o
controlador tentou avisar-me que o avião estava a ser alvejado.
Fiquei naturalmente assustadíssimo, plenamente convencido que eu e os
passageiros teríamos as nossas vidas por minutos, condenados a sofrer
queimaduras terríveis. Mas foi uma ideia muito fugaz e serenei logo de seguida,
pensando que o fogo destruindo a estrutura da asa direita, esta seria muito em
breve arrancada do avião e este entraria num parafuso vertical rodopiando
descontrolado para o lado direito, despenhando-se violentamente no solo rochoso
daquela região. A morte para todos os ocupantes seria instantânea, sem tempo
para sofrer. Era uma consolação!
Reduzi as manetes do gás, tentei embandeirar o hélice direito,
desconhecendo que este motor tinha sido arrancado da estrutura, cortei as
misturas e fechei a seletora de gasolina do lado direito, iniciando uma
aproximação para a pista do Songo. Não obstante o avião manifestar uma forte
tendência para se inclinar para a esquerda, obrigando-me a grandes correções do
manche para o contrariar, nunca me passou pela cabeça que o motor direito tinha
sido arrancado pela antiaérea. A situação não se prestava a grandes reflexões e
a preocupação era a de aterrar antes que o fogo cortasse cerne a asa direita.
Com a mistura cortada, o hélice esquerda continuava a rodar devido à
pressão do ar, isto ajudou a uma rápida descida sem ganhar velocidade. Não meti
Flaps pois receava que o avião tivesse qualquer comportamento imprevisível.
Nalgumas fotografias nota-se o Flap esquerdo descido, mas isto deve-se à
destruição pelo fogo.
Quando me encontrava perfeitamente estabilizado na final à pista,
avancei a mistura esquerda a fim de coordenar a aproximação e aterragem com o
motor esquerdo. Só que eu ignorava que o motor direito já lá não estava!
Quando senti o toque das rodas na pista, tive a preocupação de
encurtar a corrida de aterragem a fim de abandonarmos rapidamente o avião, cuja
asa direita continuava a arder. Bastou um ligeiro toque nos travões e aconteceu
o imprevisto: uma brusca guinada para a esquerda, tendo a asa direita ganhado
sustentação inclinando o avião para a esquerda. Ao nivelar o avião este foi de
novo para o ar. Conduzi-o de novo para a pista, enquanto tentava encurtar a
aterragem, manifestando o mesmo uma forte tendência para fugir para a esquerda.
Receei que nos iriamos esmagar contra os rochedos que ladeiam a pista, tendo
imobilizado o avião junto à berma esquerda da pista, abandonando todos os
ocupantes de imediato. Os bombeiros chegaram assim que o avião se imobilizou,
contudo não conseguiram dominar o fogo e o avião ficou irremediavelmente
destruído.
Só depois de ter abandonado o avião reparei que o motor desaparecera e
compreendi finalmente as tendências do mesmo: em voo inclinava-se para a
esquerda por que lhe faltava o peso do motor direito, na pista fugia para a
esquerda porque as rodas do lado esquerdo tinham a carga do motor desse lado,
sendo a aderência dos pneus do lado esquerdo muito forte. Do lado direito as
rodas não tinham a carga do motor respetivo e a aderência dos pneus à pista era
muito fraca.
Em várias fotografias nota-se perfeitamente a ausência do motor
direito.
O avião pertencia à COMAG (Companhia Moçambicana de Aviação Geral).
Foi derrubado por elementos da Frelimo!... Julgavam tratar-se de um avião
Rodesiano! E não foi caso único. Outros com menos sorte pereceram porque os
operadores das antiaéreas julgaram que se tratasse de aviões Rodesianos! Os
(ir)responsáveis não eram responsabilizados. Tudo ficava à sombra da guerra
contra a Rodésia…
25 dias após este triste acontecimento, eu e mais dois pilotos, cada
um com o seu avião, (aviões da COMAG, entenda-se) fugimos para Salisbury, atual
Harare. Era um Domingo, 9 de Setembro de 1979. Contudo no período entre 15 de
Agosto e 9 de Setembro ainda tive outro caso, felizmente sem consequências de
maior. Foi num voo noturno da Ilha de Santa Carolina para Maputo com escala em
Inhambane para reabastecimento. Quando aterrei em Inhambane alguns dos
passageiros informaram-me que quando sobrevoávamos uma localidade iluminada cerca
de 15 minutos antes de Inhambane, viram projéteis iluminados (tracejantes)
dirigidos ao avião!
Pelo tempo de voo calculei que a localidade seria Massinga.
Respondi-lhes que provavelmente estariam a tentar atingir o avião.
Perguntaram-me se não seria perigoso prosseguirmos para Maputo, sosseguei-os
dizendo-lhes que evitaria sobrevoar as localidades iluminadas ao longo da rota
até Maputo, o que seria facilmente exequível sem grandes desvios e com as luzes
de posição do avião apagadas. O voo efetuou-se sem mais incidente.
Voltando ao acidente em Cahora Bassa, muitas pessoas correram ao longo
da pista para apoiarem eventuais feridos que não se encontrassem capazes de
abandonar o avião. Contaram-me coisas curiosas! Enquanto o avião descia a
arder, atiradores armados com metralhadoras atiravam para o mesmo. Com o avião
já imobilizado na pista, esses mesmos atiradores correram agitadíssimos para o
avião com o propósito de fuzilarem os seus ocupantes. Tiveram de gritar-lhes
que o avião estava ao serviço de Moçambique. Fiquei com a impressão que os
atiradores ficaram frustrados com a informação que lhes subtraiu o prazer de
fuzilarem os ocupantes…
Pilotos de helicópteros que poucos dias após o meu sobrevoo noturno de
Massinga estiveram nesta localidade a conversarem com os operadores as
antiaéreas e contaram-me que os foram encontrar muito agitados e frustrados
porque…Ah! Se eles tivessem a antiaérea numa certa e determinada posição,
aquele avião que aqui passou à noite não teria escapado! E mostraram aos pilotos
dos helicópteros o sítio ideal onde deveria estar a antiaérea.
Era assim Moçambique alguns anos depois da independência.
Observando-se com alguma atenção as fotografias, verifica-se que não
obstante os depósitos de combustível se encontrarem dentro das asas, estas não
arderam totalmente, a asa direita mais queimada do que a esquerda e a fuselagem
à frente das asas totalmente destruída. Atrás das asas a fuselagem encontra-se
igualmente destruída, tendo-se partido ao meio.
Faro, 7 de
Abril de 2009
Joaquim Maria
Craveiro
Ver outro artigo sobre este acidente
aqui.
2 comentários:
A verdadeira odisseia do Cte. Joaquim Maria Craveiro contada na 1ª pessoa.
Só um piloto com as suas inexcedíveis qualidades profissionais conseguiria “terminar” este voo sem perdas de vidas humanas, um verdadeiro feito que merece a nossa admiração.
Outros infelizmente pereceram, graças a estes “erros grosseiros” que nunca tiveram os seus responsáveis punidos…
A nossa singela homenagem a este Grande Senhor da Aviação Moçambicana.
Infelizmente tive um colega do Liceu, mais tarde piloto aviador de seu nome Jorge Guerra, filho do conhecido Guerra dono da TAM, que foi também abatido pela Frelimo sobre a barragem de Cabora Bassa quando se preparava para aterrar no Songo e que cujo corpo nunca foi recuperado do lago. Outro amigo meu, o José Pereira, piloto da TEXAFRICA, foi também brutalmente assassinado pela anti-aérea Frelimo, na aproximação à pista de Vila Pery.
Um abraço ao Comte. J. Craveiro e outro ao Comte. J. Vilhena por nos proporcionarem estes acontecimentos trágicos da nossa "exemplar" descolonização neste caso aeronáutica.
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