Quelimane – Foz do Rio do Bons Sinais
QUELIMANE: NASCE UMA ESPERANÇA
Caros leitores amigos:
Recordam-se de certo da MEMORIA DECIMA TERCEIRA e da história daqueles dois jovens amantes, Romeu e Julieta, que transportei naquela viagem de avião do Inhassoro para o Dondo e que, como então vos relatei, descobriam fascinados os encantos do seu grande amor.
Entretanto nas nossas instalações dos Táxis Aéreos (TAM) no aeroporto da Manga, os dias sucediam-se tranquilos no ramerrão da nossa actividade, em que os voos solicitados se cumpriam como uma regularidade a que já havíamos habituado os nossos clientes e amigos.
Certa manhã, mal acabáramos de abrir a porta do escritório quando a calmaria usual foi alterada pelo toque insistente da campainha do telefone que nos ligava directamente ao serviço do despacho do aeroporto. Tratava-se de um pedido urgente de um voo com destino a Quelimane para evacuar para o hospital da Beira, uma parturiente cujo trabalho de parto fora inesperadamente interrompido!
Segundo nos informaram, a criança que se preparava para fazer a sua aparição neste mundo que vinha partilhando com a mãe nos nove meses em que habitara o ventre materno, resolveu, por uma qualquer razão que não nos souberam explicar, adiar a sua aparição.
Porque não tinha qualquer voo previsto na agenda dos serviços para esse dia, fui eu o indigitado para a sua realização.
Como acontecia nestes fretamentos solicitados sem hora ajustada, cheguei adiantado a Quelimane, aguardando por isso na placa de estacionamento junto à velha aerogare do aeródromo, a chegada dos meus passageiros.
Não tive de esperar muito tempo porque pouco depois, surgiu uma ambulância que chegou apressada, transportando no seu interior demasiado acanhado para acolher tanta gente de uma só vez, a parturiente, o médico e o marido que não conseguia disfarçar uma enorme ansiedade.
Tratava-se de um jovem casal. Ele, funcionário da Madal uma sociedade concessionária de uma extensa plantação de chá, que se estendia pela encosta sul do monte Mabú junto à vila de Tacuane, na província da Zambézia. Ela, dona de casa, cuidando de uma pequena moradia cedida pela empresa, com a ajuda de dois empregados negros, um mainato e um moleque para os pequenos trabalhos, escolhidos entre os mais jovens dos “contratados” da Madal.
Porque se aproximava o fim da gestação e sobretudo porque se tratava do seu primeiro filho, decidiram deslocar-se para Quelimane onde com toda a certeza disporiam de uma assistência que só um hospital lhes poderia oferecer, o que em boa hora o fizeram como agora se apercebiam.
Entretanto a aeronave em que me deslocara, não foi uma aposta acertada para este serviço já que não seria a mais adequada para o transporte daquela passageira.
Na verdade, sendo o Piper Comanche um avião com uma asa baixa fixa à parte inferior da fuselagem, obrigaria a passageira a subir para a sua parte superior, de forma a utilizar a única porta de acesso ao habitáculo, a porta do lado direito.
Para uma pessoa sem quaisquer limitações aquela manobra seria fácil de efectuar, obrigando-a apenas a um pequeno esforço de elevação da respectiva perna até à altura de uns poucos centímetros, utilizando ainda um pequeno degrau intermédio para a auxiliar nesse esforço.
Como podem imaginar, a situação da parturiente era deveras delicada dada a posição do feto não lhe permitia um normal movimento das suas pernas.
Num esforço conjunto, o marido, eu e o motorista da ambulância, tivemos de a levantar para a parte superior da asa, após o que a senhora se conseguiu acomodar no banco traseiro.
Só depois entramos eu e o marido que se sentou no banco da frente ao meu lado direito.
Mal nos havíamos instalado no avião e já a passageira me interrogava preocupada:
- Senhor piloto. Tem sacos de enjoo a bordo?
- Sim – respondi, apontando para a bolsa existente nas costas do meu assento mesmo à sua frente …- é só retirá-los em caso de necessidade.
E a senhora, algo preocupada, acrescentava timidamente:
- Não é para mim mas para o meu marido que enjoa durante o voo!
O médico que acompanhou a parturiente até ao aeródromo, dada a condição precária em que esta se encontrava, recomendou-me para que, tanto quanto possível, efectuasse o voo evitando aquilo que na gíria se designa por “poços de ar”.
Não foi difícil satisfazer esta recomendação já que numa manhã como a que se apresentava, fresca e sem vento, decidi voar junto à extensa costa que se estende desde o estuário do Rio dos Bons Sinais em Quelimane, até ao estuário do Rio Pungué na cidade da Beira, durante cerca da hora e meia que iria durar o voo.
Descolamos para Norte, e depois de tomada altura conveniente iniciei uma volta suave pelo lado direito em direcção aos Sul, sobre o imenso palmar que se prolongava desde os terrenos anexos ao aeródromo até junto ao mar, fazendo “jus” ao título que lhe atribuíam de “terceiro maior palmar em todo o mundo” tal era a sua extensão que pintalgava de verde todo o terreno sobrevoado.
Em pouco mais de vinte minutos voávamos já sobre o Chinde, uma vila localizada no braço mais a norte do grande delta do Rio Zambeze que evoluía preguiçosamente por entre os meandros da grande planície de Marromeu despejando na corrente do Canal de Moçambique, parte da água que ciosamente transportava desde a sua nascente na Zâmbia, numa distância de 2.750 km.
Segundo referências dos antigos escritores, o rio dos Bons Sinais já foi em tempos muito recuados um braço do rio Zambeze.
Este rio exerceu desde sempre um enorme fascínio entre os vários exploradores e missionários europeus que o percorreram desde os anos idos de 1840 a 1890.
Foi sem dúvida David Livingstone, médico e missionário escocês, explorador ao serviço da Royal Geographical Society, o europeu que mais contribuiu para o conhecimento dos territórios e dos povos africanos da África central e do Sul.
Em 1842, iniciou uma expedição de quatro anos com a finalidade de encontrar uma rota que partindo do Alto Zambeze chegasse até à costa oriental africana.
Em Maio de 1856 atingiu finalmente a foz do Rio Zambeze, tornando-se o primeiro europeu a atravessar a África meridional em toda a sua largura. Em 1855 e durante aquela travessia, Livingstone descobriu uma espectacular cachoeira que baptizou de 'Victoria Falls" em homenagem à Rainha Victória.
Devo aqui lembrar com o devido merecimento, os nomes dos não menos famosos exploradores portugueses, Hermenegildo Capêlo e Roberto Ivens que, com um propósito diferente das expedições de Livingstone, partiram de Moçâmedes em 29 de Abril de 1884 e chegaram finalmente a Quelimane em 21 de Junho de 1885, numa jornada de 14 meses que iriam qualificar como um "inferno no interior africano, durante o qual a fome, o frio, a natureza agreste, os animais selvagens, a mosca tsé-tsé, puseram em permanente risco a vida daqueles exploradores”.
Ao longo de toda a viagem, Roberto Ivens escreve, desenha, faz croquis, levanta cartas enquanto Hermenegildo Capelo recolhe também espécimes de plantas, rochas e animais, num contributo científico ao legado existente na Sociedade de Geografia de Lisboa.
Este grandioso esforço de todos aqueles exploradores é tanto maior se considerarmos o enorme percurso deste imenso rio que na sua longa corrida atravessa uma pequena parte das terras de Angola logo após a sua nascente na Zâmbia e correndo apertado entre os territórios da Zâmbia e do Zimbabwe, apressa-se depois a alcançar o território de Moçambique junto ao Zumbo percorrendo depois mais de oitocentos quilómetros até se misturar com as águas do Oceano Índico no canal de Moçambique servindo-se dos três grandes braços que compõem o seu enorme delta.
Para trás ficam testemunhos de rara grandeza como as belas Cataratas de Vitória e as imensas albufeiras de Kariba e de Cahora Bassa.
Num outro tempo não muito distante, ficaram também para trás os testemunhos de um rio por onde os mercadores portugueses infiltrados no império dos Monomotapas, comerciaram o ouro, marfim e escravos em troca de panos e missangas que recebiam de Lisboa e da Índia.
Todos estes produtos eram transportados rio abaixo até ao porto de Quelimane no rio dos Bons Sinais onde eram embarcados para novos caminhos como por exemplo a ilha de Cuba que até ao ano de 1850 foi o principal destino dos escravos provenientes da Zambézia.
O rio Zambeze exerceu sempre desde os tempos mais recuados um fascínio em quem o contemplava, desafiando-os a descobrir o feitiço que os levava a apaixonarem-se por ele.
Que o digam os jovens pilotos que o sobrevoavam fascinados com os segredos que desvendavam sempre que o contemplavam lá do alto das suas máquinas voadoras ou quando percorriam em voo rasante as cachoeiras de Cahora Bassa ou as da serra da Lupata, com a asa do lado da volta quase roçando a água que saltava enfurecida por entre as rochas que afloravam no leito do rio enquanto a outra apontava para as altas serranias que nos olhavam com ar de censura pelo nosso atrevimento!
A nossa viagem prosseguia entretanto em excelentes condições. Os passageiros dormiam vencidos pela agitação que a anormal conjuntura lhes provocara! O vento limitava-se a insuflar uma ligeira brisa e o calor ainda não apertava àquela hora da manhã porque voávamos sobre o mar, junto à costa.
Se o voo se realizasse por volta das três horas da tarde a situação não seria de certo a mesma porque a região do delta do Zambeze era uma zona onde se formavam e permaneciam estacionárias enormes nuvens de desenvolvimento vertical, os cúmulo-nimbos, que descarregando violentas trovoadas eram obrigatoriamente obstáculos a evitar.
Nas aeronaves maiores, a detecção dessas nuvens fazia-se com a utilização dos radares de tempo.
Para nós Bush Pilots, voando pequenas aeronaves desprovidas dessas “modernices tecnológicas”, era difícil reconhecer a sua posição de modo a evitá-las. Felizmente que a nossa experiência permitia-nos escapar sem sensíveis danos provocados pelo granizo ou pela turbulência estimulada pelos fortes ventos existentes no interior dessas nuvens.
Confesso-vos muito particularmente, que o “melhor acessório” dos nossos “radares especiais”, era um par de óculos da marca “RayBen”!
É que as suas lentes coloridas de um verde-escuro permitiam-nos distinguir, no meio das nuvens que nos envolviam, os contornos das zonas mais densas, mais carregadas de precipitação e providas de maior actividade, facilitando evita-las com segurança.
Esta nossa “técnica” era complementada com o conhecimento do comportamento das agulhas das rádio-bússulas: na presença de um relâmpago, as agulhas moviam-se na direcção da fonte eléctrica apontando assim para o local onde se encontravam os cúmulos-nimbos, isto é, o obstáculo a evitar.
Entretanto, preocupado com os passageiros espreitei o rosto dos nossos viajantes, que não despertaram do seu sono durante todo este tempo que vos tenho falado deste tão grande quanto belo rio, o Zambeze, que divide fisicamente o território de Moçambique em duas partes, Norte e Sul.
Foi já muito perto da Beira que senti a mão da minha passageira pousar delicadamente no meu ombro, sorrindo feliz, no que percebi ser um agradecimento pelo cuidado com que efectuara aquele voo tão especial.
Sorri animado com o seu comportamento corajoso que revelara durante aquelas quase duas horas de voo e voltando-me para a frente do avião, apontei para a cidade da Beira junto ao rio Pungué que se divisava já ao longe.
Pouco passava do meio-dia quando aterrámos finalmente no aeroporto da Manga no termo de uma viagem tranquila e onde já nos esperava uma ambulância com uma equipa médica que encaminhou de imediato a parturiente para o hospital da Beira.
Nessa mesma tarde nascia uma linda menina de farto cabelinho preto a quem apelidaram de ESPERANÇA pela convicção com que o jovem casal confiou no desenlace feliz daquele inoportuno incidente.
Parede 28 de Agosto de 2011
3 comentários:
Grato pela partilha Com. Primavera.
Abraço
R. Quintino
Eu que sou um Beirense e Natural de Moçambique estas histórias encantam-me, obrigado J.Primavera por as partilhar connosco. A Minha familia tinha uma pista perto da beira a pista do Sengo, tenho de ver se encontro fotos do local para enviar a este excelente blog
Fico a aguardar as fotos...
Volte sempre.
Luísa Hingá
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