O Voando em Moçambique é um pequeno tributo à História da Aviação em Moçambique. Grande parte dos seus arquivos desapareceram ou foram destruídos e o que deles resta, permanecem porventura silenciosos nas estantes de muitos dos seus protagonistas. A História é feita por todos aqueles que nela participaram. É a esses que aqui lançamos o nosso apelo, para que nos deixem o seu contributo real, pois de certo possuirão um espólio importante, para que a História dessa Aviação se não perca nos tempos e com ela todos os seus “heróis”. As gerações futuras de certo lhes agradecerão. Muitos desses verdadeiros heróis, ilustres aventureiros desconhecidos, souberam desafiar os perigos de toda a ordem, transportando pessoas e bens de primeira necessidade ou evacuando doentes, em condições meteorológicas adversas, quais “gloriosos malucos das máquinas voadoras”. Há que incentivar todos aqueles que ainda possuam dados e documentos que possam contribuir para que essa História se faça e se não extinga com eles, que os publiquem, ou que os cedam a organizações que para isso estejam vocacionadas. A nossa gratidão a todos aqueles que ao longo dos tempos se atreveram e tiveram a coragem de escrever as suas “estórias” e memórias sobre a sua aviação. Só assim a História da Aviação em Moçambique se fará verdadeiramente, pois nenhum trabalho deste género é suficientemente exaustivo e completo. A todos esses ilustres personagens do nosso passado recente que contra tudo e todos lutaram para que essa história se fizesse, a nossa humilde e sincera homenagem.

A eles dedicamos estas linhas.

José Vilhena e Maria Luísa Hingá

========================

Quem tiver fotos e/ou documentos sobre a Aviação em Moçambique e os queira ver publicados neste blogue, pode contactar-me pelo e-mail:lhinga@gmail.com

=======================

Por motivos alheios algumas das imagens não abrem no tamanho original. Nesse caso podem selecionar “abrir imagem num novo separador” ou “Guardar imagem como…”.

13/04/09

593-MEMÓRIAS PARA UM “BUSH PILOT” - Memória Quinta



MEMÓRIAS PARA UM “BUSH PILOT”

Na pista de Inhamacala em Manica e Sofala (da esquerda para a direita): o Comanche com a matrícula CR-AGJ, o Cessna 180, CR-AFH e o Cessna 185, CR-AIZ, três aviões da frota dos TAM. Em primeiro plano o piloto Moura. As referidas aeronaves estão estacionadas na faixa de aterragem constituída por terreno natural coberto por capim. Note-se o contraste entre a altura da árvore onde está colocada a manga indicadora da direcção do vento e o reduzido tamanho desta referida manga!

MEMÓRIA QUINTA:
Caros Amigos. Estão de certo recordados daquele pequeno desvio da narrativa anterior sobre a vida dos BUSH PILOTS na MEMÓRIA QUARTA. Aqui estou, como então prometido, para vos falar da pista de aterragem, propriedade de um casal de madeireiros conhecidos pelo “casal Martinote”.
Deste casal, guardo uma imagem difusa, já que só nos encontrávamos à entrada ou saída do avião que tripulava, antes ou depois de uma viagem, do aeroporto da Manga (Beira) para a pista de aterragem do Martinote, situada na margem direita do Rio Búzi, uns quilómetros a Oeste da vila do mesmo nome.
Sei que eram madeireiros e que detinham uma autorização devidamente licenciada para abate de árvores, cujos imensos troncos, depois de serrados e tratados, se destinavam a trabalhos de marcenaria.
Lembro-me apenas que a senhora, um pouco mais nova que o senhor Martinote, se aprestava para o voo quase sempre com um vestido de chita, simples e fresco, adequado à humidade e às temperaturas demasiado altas, que tornavam a atmosfera da floresta dificilmente respirável.
Senhora faladora, muito viva, boa observadora, não deixava passar nada de anormal que notasse em qualquer momento do voo, como adiante vos contarei!
Para construir a pista, o casal Martinote teve de proceder à limpeza de uma faixa de 700 metros de comprimento e de 30 metros de largura, numa floresta densamente povoada com árvores de grande porte.
Com as dificuldades que defrontaram no corte e remoção das árvores, tiveram de condicionar a direcção da operação da pista a um único sentido, quer para aterragem quer para descolagem, ou seja, as aeronaves aterravam de nascente para poente, e descolavam de poente para nascente, independentemente da direcção donde soprasse o vento!
E para assegurar com relativa segurança uma aproximação à cabeceira do topo nascente, foram desbastados, ainda que irregularmente, os topos mais altos das árvores que transpunham a ladeira desta aproximação, de modo a permitir um gradiente de descida de cerca de 10%. A pista terminava no topo poente, numa autêntica parede constituída pelas árvores que a delimitavam.
Era pois este o cenário em que se efectuavam as viagens para transporte do casal Martinote, sempre que se deslocavam de visita à cidade da Beira.

Porque a operação era muito especial, fui assistido, na minha primeira viagem àquela pista, pelo meu colega Calrão, voando um Cessna 180 que era sem dúvida a aeronave de eleição para esta operação, dadas as suas características:
- Primeiro, porque a operação era a mais económica da frota;
- Depois porque possuía um robusto trem de aterragem fixo, constituído por duas lâminas flexíveis de aço especial que terminavam em duas rodas com travões muito eficientes;
- Também porque, sendo um avião de asa alta, permitia que o piloto avistasse com nitidez os obstáculos que a cada instante sobrevoava;
- E por último porque, estando equipado com um trem convencional que, colocava o nariz do avião levantado numa inclinação aproximada de 8º, posicionando-o previamente numa atitude ideal para a aproximação.

Continuando a descrição desta minha primeira viagem, avistamos em breve a pista e preparamo-nos para a aproximação configurando já o avião para a aterragem. Sobrevoávamos cuidadosamente as copas das árvores que delimitavam irregularmente a ladeira de descida, com o avião “pendurado” no motor mantendo uma velocidade crítica, muito perto da velocidade de perda, cerca de 5 nós acima dela, que nós antecipávamos, não só pela sensibilidade que experimentávamos nos “fundilhos das calças”, quando o assento do banco parecia desaparecer afundando-se, mas particularmente pelo aviso sonoro (uma buzina), que “gritava” durante toda a descida e que só se calava quando o robusto trem se acachapava no piso de areia, permitindo que de imediato se começasse travar o avião detendo-o finalmente já perto do final da pista.
Na descolagem o “filme” era idêntico. Com o avião acelerando pela pista fora e quando se atingia a velocidade mínima de controlo, seleccionava-se a 1ª posição de flaps e o avião “saltava” para o ar.
Era então que se iniciava uma esgotante luta para se conjugar a manutenção da velocidade do avião uns 5 nós acima da velocidade de perda, com uma subida positiva que lhe permitisse transpor os obstáculos existentes na subida. Uma vez vencidos, permitia-se limpar o avião acelerando-o para a velocidade de cruzeiro.
Entretanto já estão a entrever a perspectiva louca desta descolagem:
- Logo que o avião se elevava no ar, a “buzina” começava a gritar, e só se calava quando, ao ser atingida uma altitude de segurança sobre das árvores, se começava a aumentar a velocidade do avião acima dos 5 nós além da velocidade de perda.
Durante este interminável período de tempo, aquela cabina, era uma mistura infernal do som metálico da saída do escape do motor com a gritaria estridente daquela ensurdecedora buzina!

Ora, numa manhã de sábado daquele ano de 1965, chegado pela manhãzinha ao escritório dos TAM, sou abordado pelo meu patrão e Amigo Jorge Guerra que me previne:
- Primavera, tem de ir ao Martinote pelas 10 horas, para trazer o casal para a Beira. Leve o GJ.
Ora o GJ, era o Comanche de matrícula CR-AGJ que como já vos descrevi na MEMÓRIA SEGUNDA era um mono motor de asa baixa, silenciosamente veloz, com um habitáculo bastante cómodo.
Ao contrário do Cessna, tinha um trem retráctil, modelo triciclo, como o que equipa todas as aeronaves actuais, o que, para operação naquela pista, representava uma embaraço como estão a ver pelas razões anteriormente enumeradas.
Porque não havia na altura outra aeronave disponível tive mesmo de a utilizar e voei em direcção ao Martinote.
A aproximação foi realizada nos moldes atrás relatados, com a agradável diferença que reinava um silêncio na cabina daquela bela máquina, já que o avisador da perda utilizava um sistema visual constituído por uma lâmpada vermelha que piscava intermitentemente, em vez da buzina estridente do Cessna.
Se o silêncio “era de ouro”, já não “era de ouro” a impossibilidade de observar, ainda que pelo canto do olho, a copa das árvores que sobrevoava nessa manhã de um dia de verão em que as correntes de ar caprichosamente levantavam ou baixavam a trajectória do avião, provocando uma sensação mista de desconforto e de leve náusea, pelo facto de o Comanche ser um avião de asa baixa.
A aterragem foi normal para aquele veloz tipo de avião, e a travagem foi continuadamente aplicada, utilizando o travão de mão situado por debaixo do “tablier”. Com a finalidade de auxiliar a desaceleração, imprimi à trajectória da aterragem um ziguezague pela pista fora, até que no seu final tive de provocar uma leve derrapagem, para completar uma volta rápida de 180º, o chamado “cavalo de pau”, detendo finalmente a aeronave.
Já fora do avião, completamente suado não só pela temperatura do ar, como ainda por aquilo que hoje é vulgar ouvir-se relatar referindo os praticantes dos desportos radicais, “a adrenalina”, resolvi inspeccionar, enquanto aguardava a chegada dos passageiros, o piso daquela pista de aterragem para compreender a razão daquela desconfortável aterragem.
Com espanto apurei que o pavimento não estava nivelado, o que de resto não constituía novidade naquelas pistas. Este porém era demasiado irregular, oscilando, com pendores muito acentuados, tanto para a esquerda como para a direita, o que provocava nesta aeronave de asa baixa, inclinações perigosas para um e para outro lado como se as asas fossem tocar o solo. O piso expunha demasiadas aflorações de antigos morros de térmitas (que nós em Moçambique designávamos por muchém), muito duros e demasiado polidos, com efeitos de travagem muitíssimo reduzidos.
Agravando este cenário, todo o pavimento estava coberto por pedaços soltos de capim seco que aquelas térmitas espalhavam e que tornavam ainda mais escorregadia toda a pista.
Cerca de uns 30 minutos depois de ter aterrado chegou um tractor que transportava o casal Martinote que ao ver-me sentado à sombra de uma árvore protegendo-me dos raios impiedosos do Sol, se apressou a cumprimentar-me lançando com o seu sorriso, um pouco de frescura naquela tarde sufocante.

- Bom dia … está muita calorrr! - Disse com um sorriso a senhora num sotaque engraçado que me fez sentir menos miserável, ao mesmo tempo que correspondi à sua saudação.
Como devem estar recordados, nas minhas anteriores MEMÓRIAS, ao referir-me às características deste avião, havia escrito que a única porta de acesso ao habitáculo, era a porta do lado direito, pelo que, a primeira pessoa a entrar para os bancos da frente era sempre o piloto. Só depois de devidamente instalado, entrava o passageiro da frente.
Assim, acomodados os dois passageiros, o marido no banco traseiro e a senhora, no banco da frente do lado direito, iniciei a rolagem para o início da pista, mas desta feita com a porta aberta, de modo a renovar a atmosfera sufocante que reinava no interior daquela cabina exposta à torreira do Sol durante aquele longo tempo de espera!
Alinhado o avião, fechada a porta, avancei a “manete” do acelerador e aguardei que o motor atingisse as 2.750 rotações, após o que larguei o travão de mão.
Sentindo-se solto o avião começou uma correria por aquela pista que de tão irregular mais parecia impedir que ele acelerasse, balançando-o ora para um ora para outro lado.
A senhora que pela primeira vez se sentara naquele avião, cuja atitude no solo era completamente diferente da do Cessna a que estava acostumada, em que à partida nada via para além do nariz do avião, confrontada agora com uma perspectiva da pista, observada horizontalmente em toda a sua extensão e cujo final distinguia perfeitamente a aproximar-se, começou a “esconder-se” dessa estranha visão, deslizando vagarosamente para baixo do “tablier”, até ficar praticamente deitada no banco!
Aquela lenta agonia só terminou quando, atingida a velocidade mínima de controlo, seleccionei a primeira posição de flaps que permitindo um aumento súbito de sustentação fez com que o avião “pulasse” pouco mais de um metro para o ar.
De imediato recolhi o trem, e iniciei então o que atrás vos relatei, uma extenuante luta para conjugar a manutenção da velocidade do avião próximo da velocidade de perda, com uma subida positiva de modo a transpor os obstáculos existentes, sempre atento à indicação do avisador luminoso da velocidade de perda.
Sentindo o avião no ar a senhora Martinote recuperou a sua postura habitual, endireitando-se no banco e logo que ultrapassamos as copas das últimas árvores, um brilho assomou aos seus belos olhos de um azul celeste.
Como atrás referi, esta passageira, senhora faladora, muito viva, boa observadora, não deixava passar nada de anormal que notasse em qualquer momento do voo.
Por isso, com uma voz crítica de um saber de experiência feito, olhou-me e comentou categoricamente:

- Esta avion não estarrr bom!
- O que disse?

- Esta avion não estarrr bom!
-Porquê? Perguntei.

- Não toque à buzina …
- #*@*»*&*«?*£*%*§ !!! ...


---ººººººººººººººººººº---


Caros e pacientes leitores. Terminada esta prometida narrativa sobre o casal Martinote e a sua pista, anuncio-vos antecipadamente o tema da MEMÓRIA SEXTA: A pista do Chitengo no Parque Nacional da Gorongosa. Até lá …

Bons voos.



1 comentário:

Anónimo disse...

Como eu entendo...e que saudades...isto era voar.