Torre
do Valle do lado esquerdo, com Carlos Calçada Bastos e Gabriel Zoio junto ao Puss
Moth CR – MAG , baptizado de GAZAIII dias antes do início da sua viagem em que
ligaria a vila do CHAI CHAI em
Moçambique, à cidade de Lisboa onde aterraria na pista de Alverca.
Versão reconstruída de uma
aeronave de matrícula britânica de um Puss Moth DH.8OA, idêntico ao CR –
MAG de Torre do Valle.
MEMÓRIA
20ª
DEIXANDO A IMAGINAÇÃO VOAR DESDE A VILA
DO CHAI-CHAI EM MOÇAMBIQUE ATÉ À CIDADE
DE LISBOA EM PORTUGAL!
Naquele dia de Setembro do ano de 1937,
Eugénio Matsinhe conduzia pela mão o pequenito Quinzinho até à mercearia que estava ali mesmo na esquina
perto de casa para comprar meio quilo de batatas e uma medida de azeite que
faltavam para a sua patroa preparar almoço. Eugénio não levava consigo qualquer
quantia em dinheiro, porque como de costume as despesas com as compras eram apontadas
no “livro de crédito” dos seus patrões e seriam depois liquidadas quando
chegasse o fim do mês.
Foi então que, surgindo dos lados do
campo de aviação da carreira de tiro uns três ou quatro pequenos aviões que começaram a evoluir em largos círculos por
cima das campas do cemitério de S. Francisco Xavier que se desenvolvia na outra
esquina ali mesmo em frente à mercearia, no cruzamento das avenidas Manuel de
Arriaga e Pinheiro Chagas, quais gaivotas olhando assustadas para a companheira
que jazia no solo ferida de morte, incapaz de voltar a voar.
Passaram-se entretanto vinte e oito anos
- estávamos agora em Setembro de 1965 ano em que iniciei a profissão de piloto
aviador nos Táxis Aéreos da Beira.
Na manhã do dia 16 de Setembro descolei
do aeródromo da Beira pelas seis horas aproveitando o fresquinho da manhã que
despontara havia ainda pouco tempo, com destino a Lourenço Marques numa viagem que se afigurava decerto longa,
transportando um cliente muito especial da nossa empresa, o senhor Acácio
Augusto Pires.
Este passageiro responsável pela WENELA
para a área do Sul do Save, deslocava-se com uma regular frequência entre
aquelas duas cidades utilizando os nossos aviões já que lhe permitiam passar
por Inhambane e por
João Belo mais conhecido pelo Chai-Chai
visitando as delegações da sua empresa naquelas localidades.
Para esclarecimento do leitor, a WENELA
ou Witwatersrand Native Labour Association era uma empresa criada para
recrutamento de trabalhadores negros, migrantes dos territórios vizinhos, para
trabalharem nas minas de ouro da vizinha África do Sul.
Em Moçambique a propaganda desenvolvida
pelos agentes daquela empresa, os "recrutadores", foi de tal modo
efectiva, que os homens da parte Sul do território, só seriam aceites para
casamento depois de terem cumprido pelo menos um contrato de doze meses nas
"minas do John" como eram conhecidas as minas de ouro junto à cidade
de "Johannesburg".
Esta força de trabalhadores conhecidos
por "magaíças" constituíam uma
importante fonte de receita para o governo central português, já que a
WENELA, ou melhor o governo sul africano pagava em ouro, ao governo de Moçambique,
uma taxa por cada contracto de trabalho efectuado. O ouro era depois
encaminhado para os cofres do Banco de Portugal em Lisboa.
-
Primavera - perguntou a
determinada altura o meu passageiro numa tentativa bem sucedida de quebrar o
silêncio que o início da viagem instalara na cabina do nosso pequeno avião - sabe
que há precisamente vinte e oito anos foi sepultado em Lourenço Marques uma
grande amigo meu, nessa altura meu chefe, um pioneiro da aviação moçambicana, Armando de Vilhena da Torre
do Valle? - e
continuava cada vez mais entusiasmado - esse meu grande amigo morreu trucidado por um
elefante solitário, que havia ferido durante uma caçada aos elefantes.
E
depois de um silêncio em que decerto pensava nesse trágico episódio, continuou:
- Pois é verdade. Aquela fatídica caçada foi
organizada a pedido do seu amigo, o administrador do Chibuto, com a finalidade
de defender as culturas indígenas das devastações provocadas pelos elefantes que,
na época das secas, se deslocavam mais para Sul à procura de alimentos que
escasseavam no seu território habitual.
Foi sepultado no dia 17 de Setembro no
cemitério S. Francisco Xavier em Lourenço Marques, num dia luminoso em que os
aviões do Aeroclube de Moçambique voando em largos círculos lançaram coroas de
flores que cobriram a campa onde repousaria para sempre.
Curiosamente
veio-me à memória aquela imagem que me perseguiu continuamente durante a minha
adolescência e que, de tão intensa, nunca mais me abandonou até à idade adulta.
Foi precisamente naquela manhã do dia 17 de Setembro de 1937, como escrevi no
início desta MEMÓRIA, quando pela mão do Eugénio assisti deslumbrado às evoluções
daqueles pequenos aviões que traçavam no céu largas voltas sobre as campas do
cemitério de S. Francisco Xavier, uma das quais guardaria o corpo de alguém cujo nome só agora conhecia, Armando
Torre do Valle e de quem iria conhecer uma extraordinária aventura contada de
uma maneira tão empolgada pelo meu passageiro Acácio Pires.
O
Armando Torre do Valle era um homem de elevada estatura física, senhor de um carácter
vigoroso marcado num face de contornos bem vincados.
Possuidor
de um elegante porte, detentor de rara cultura, infundia respeito e
consideração capazes de conquistar verdadeiras amizades.
Homem
habituado às imensas planícies do Sul do Save, teve uma existência
cheia de aventuras a que agora iria juntar mais uma, cuja grandeza por vezes o
assustava mas que depressa ultrapassava com aquela paixão com que se lançava em
todos os seus projectos.
Torre
do Valle vivia com apaixonada
intensidade as novas aventuras que os pilotos experimentavam nos anos vinte e
conhecia-as todas nos seus pormenores:
- Em
1922 Gago Coutinho e Sacadura Cabral atravessam o Atlântico Sul até ao Brasil!
- Em
1927 Sarmento Beires, aviador militar, voa de Alverca ao Rio de Janeiro num
hidroavião bimotor auxiliado por uma tripulação constituída por um copiloto e
um mecânico!
- Em
1927 Charles Lindbergh voa de Nova Iorque a Paris partindo de Nova Iorque nos
- Em
1928 Carlos Bleck inicia um voo até à Índia, mas uma panne no motor obriga-o a
desistir já a meio do seu percurso no deserto da Arábia
- Também
em 1928 Charles Kingsford Smith cruza o Oceano Pacífico!
- E
ainda nesse ano, o Capitão Paes Ramos e o Tenente João Maria Esteves realizam um “raid” aéreo ligando Portugal a
Moçambique, utilizando duas aeronaves “Vickers” pertencentes à esquadrilha de aviação
da República instalada na Amadora!
Torre
do Valle recolhia todas as notícias daqueles arrojados pilotos que cruzavam os
ares em inéditas façanhas.
Nascido
a três de Maio de 1888 na cidade do Porto, veio para Moçambique em 1895 com
apenas sete anos de idade e aqui permanecera até então. Aproveitando a licença
de seis meses que a WENELA, como as demais empresas da Colónia, concedia aos
seus funcionários e que normalmente eram gozadas em Portugal interroga-se:
- Porque não fazer essa viagem de avião? De
certo que não ficaria mais cara que uma
viagem de barco já que o orçamento previsto de duzentas libras não excedia o
preço daquela viagem.
E
com este propósito, Torre do Valle, senhor de um invulgar espírito aventureiro,
concebe o projecto de uma viagem aérea ligando a vila de Chai- Chai em
Moçambique à cidade de Lisboa em Portugal, aprazando antecipadamente a data do
seu início para o dia primeiro de Abril de 1933, de modo a poder festejar o seu
quadragésimo quinto aniversário junto da sua mulher, Ema de Almeida Campos e
dos filhos que residiam em Cascais.
Torre do Valle vivia entusiasmado a
expectativa da aventura. Para a sua concretização necessitaria da companhia de
alguém (que ele bem conhecia), um excelente mecânico de motores, o Amadeu de Araújo, aluno
piloto da sua escola de pilotagem que decidira fixar residência em Portugal.
- Amadeu. Em vez de
viajares para a metrópole num qualquer paquete refastelado numa cadeira de
convés de perna estendida sem experimentares o estímulo que só um voo proporciona, porque não
partilhas comigo esta espantosa viagem, onde além de me ofereceres o teu
competente apoio de mecânica, irás com toda a certeza, deslumbrar-te com
estranhas e belas paisagens que algumas vez contemplaste e talvez ainda, viver
aventuras que só uma vez na tua vida terás a oportunidade de desfrutar sem
acréscimo ao preço que irás pagar pela passagem de barco?
Os dias que antecederam
aquele primeiro dia do mês de Abril foram de uma louca roda-viva com idas e
vindas entre o Chai-Chai e Lourenço Marques recolhendo material necessário às
modificações que permitissem ao pequeno "GAZA III" cumprir a missão a
que ele se propusera: - voar desde Moçambique até Portugal, sem qualquer apoio
das autoridades da colónia. Seria o primeiro “raid” desportivo realizado por um
piloto civil que possuía na altura uma experiência de apenas 350 horas de tempo
de voo!
O “GAZA III” que ele
oferecera a si próprio como prenda do Natal de 1931, era uma pequena aeronave (um
DeHavilland DH.80A Puss Moth de 110 cavalos de potência) que teve de ser
sujeito a importantes transformações para poder cumprir o plano que Torre do
Valle traçara para esta viagem:
- Na parte da frente do estreito
habitáculo o piloto instalado num assento
forrado de napa de cor bege, tinha acesso aos comandos da aeronave e aos
instrumentos básicos do motor e da navegação. Atrás dele, num banco desalinhado
do seu, iria sentar-se o Amadeu que poderia estender as pernas beneficiando do exíguo
espaço que o desalinhamento das cadeiras
lhe oferecia.
- Na parte traseira da
cabina, o espaço destinado a um possível terceiro passageiro, foi transformado
num pequeno compartimento de carga que iria transportar dois pneus, algumas
peças sobressalentes e as ferramentas indispensáveis a quaisquer prováveis
reparações. Foi aí que seriam colocadas também as limitadas bagagens com os
pertences individuais dos nossos aventureiros.
- O sistema de combustível sofreu
talvez a maior modificação do avião com
o acréscimo de um tanque suplementar que iria permitir através de um extenso
ramal de alimentação, aumentar a autonomia da aeronave até às nove horas de voo
mais três que o normal neste modelo.
Todo este trabalho de
transformação foi realizado por Torre do Valle e pelo Amadeu, com a indispensável
ajuda do grande amigo o Manuel Maria, brilhante mecânico de motores no
Chai-Chai. Este jovem havia sido o primeiro aluno brevetado na sua escola de
pilotagem no Aeroclube de Moçambique e que Torre do Valle elogiava
para quem o quisesse escutar:
- Este miúdo ainda vai ser um grande
piloto.
Fixem desde já o nome do
futuro Comandante Manuel Maria Rocha porque muito se há-de ouvir falar dele.
Prevendo longos percursos
com chegadas tardias aos aeródromos já que não poderiam dispor de informações
meteorológicas necessárias ao voo, iniciam intensos treinos de voo com
aterragens nocturnas na pista do aeroclube do Chai-Chai, com o auxílio de
archotes e candeeiros a petróleo.
Logo pela manhã daquele primeiro dia do mês de Abril, o dia “D” marcado para o início da viagem, mal o Sol despontara
no horizonte, Torre do Valle, o Manuel
Maria e o seu companheiro da grande aventura, o Amadeu, concluíam as últimas
verificações ao GAZA III que em breve iria descolar para uma viagem de cerca de
12.000 quilómetros.
Estas verificações do GAZA III iriam ser rigorosamente repetidas durante
todas as etapas após a aterragem e antes de cada descolagem e executadas por
Torre do Valle e Amadeu Araújo.
Na véspera haviam verificado minuciosamente o plano de voo que fora pensado
tendo em atenção as informações disponibilizadas pelos contactos que Torre do
Valle mantinha com as diversas delegações da WENELA nos países vizinhos de
Moçambique situados na costa oriental de África.
Beneficiando ainda do perfeito domínio da língua inglesa e do contacto
com diversos sectores da colónia britânica da África do Sul onde ele obtivera a
sua licença de voo, decidiu-se por uma rota que percorreria a costa de leste de
África através do Niassalândia do Quénia e do Sudão Anglo Egípcio até ao Egipto,
países onde existia uma rede administrativa britânica de serviços de apoio.
Esta escolha tornava-se ainda mais recomendável se observarmos com
atenção o mapa de costa oriental de África: - a rota escolhida desenvolve-se por
um enorme território que contém um longo vale pertencente ao sistema geológico do
“Grande Rift Oriental” que se estende ao longo da costa leste de África desde a
Etiópia até à região central de Moçambique por cerca de 6.000 quilómetros.
Esta enorme fenda tectónica inclui os grandes lagos africanos como o
Lago Shire, o Lago Niassa, o Lago Tanganica, o Lago Alberto e o enorme Lago
Victória onde se situa a nascente do Nilo Branco que corre para Norte até ao
Mar Mediterrâneo percorrendo uma distância de 6650 quilómetros.
Esta vasta rede de lagos que se prolongam pelo Nilo Branco até ao Cairo
constituíam um importante apoio à navegação desta expedição que seria efectuada
“à vista do terreno”, facilitando a execução do plano de voo preparado por
Torre do Valle com o suporte de Manuel Maria Rocha.
Recorde-se que no GAZA III não existia qualquer instrumento de
comunicação via rádio com qualquer estação terrestre o que tornava este voo
ainda mais complicado pelo desconhecimento das condições meteorológicas que iriam encontrar em toda a rota.
E o plano de voo havia sido assim concebido utilizando as exíguas ajudas
existentes:
- Após a descolagem do Chai-Chai aterrariam no Chinde ainda em
Moçambique. Dali voariam para Blantyre no Niassalândia onde pernoitariam.
No dia dois de Abril levantariam voo com destino a Nairobi, no Quénia.
Neste trajecto, depois de escalarem Mpika, pernoitariam em Mbeya no dia três e
em Dodoma no dia quatro.
De Nairobi seguiriam no dia cinco para Juba na margem esquerda do Nilo
Branco situada no então Sudão Anglo Egípcio onde pernoitariam.
Voariam depois para Malakal na etapa seguinte antes de escalarem Cartum.
De Cartum voariam para Wadi Halfa onde chegariam no primeiro dia de Maio
para mais uma pernoita antes de deixarem o Sudão Anglo Egípcio em direcção à
cidade do Cairo no Egipto.
Do Cairo seguiriam para Bengazi na Líbia e Gabés na Tunísia pernoitando
em cada uma destas cidades.
Finalmente depois de Gabés, a próxima escala seria Fez em Marrocos onde chegariam
no dia 13 de Maio na última pernoita antes de descolarem para a derradeira
etapa da sua viagem em direcção a Lisboa com passagem pela cidade de Tânger.
A chegada no dia 14 de Maio previa a aterragem na pista de Alverca por
volta da hora de almoço.
Cumpririam assim um total de aproximadamente setenta horas de voo durante
os onze dias de viagem.
A divulgação deste “raid” aéreo merecera uma certa parcimónia por decisão
de Torre do Valle homem de acção e de poucas palavras pouco propenso às vulgarizações
da publicidade jornalística.
Não obstante estes cuidados, a notícia foi divulgada nas últimas edições
dos diários “Notícias” e “Lourenço Marques Guardian” e assim, pelas seis horas
da manhã daquele primeiro dia do mês de Abril lá estavam todos os amigos, como
o Calçada Bastos um dos mais entusiastas apoiantes da ideia desta viagem, o seu
chefe e companheiro das caçadas Alberto Abrantes e mais aqueles que perceberam
que era chegada a hora do início daquela aventura.
Pouco depois o GAZA III começa lentamente a deixar o local de
estacionamento junto ao hangar do aeroclube do Chai-Chai e inicia a corrida
para a descolagem acelerando pelo campo de relva coberta por uma fina camada de
orvalho da noite anterior.
Lentamente o roncar metálico do motor vai transmitindo velocidade à
pequena aeronave que se eleva finalmente no ar por entre os aplausos e as
exclamações do espectadores deste acontecimento.
Descolara para Sul e após uma volta pela direita passa em voo rasante sobre
o campo de aviação balançando as asas numa saudação de despedida e de agradecimento
pela presença estimulante daqueles que vieram desejar-lhes boa viagem.
Em breve o avião tomando altura deixou de ser avistado, ocultando-se
entre os “cúmulos do bom tempo” que auspiciavam o sucesso daquela aventura que
agora se iniciara.
A atmosfera fresca da manhã proporcionava um voo calmo que o GAZA III
parecia partilhar com os nossos pilotos sulcando prazenteiro o ar, por entre o
ruído do escape do motor que, como comentava Torre do Valle para o Amadeu bem
instalado no assento posterior, trabalhava com a precisão de um bom relógio
Suíço!
Deixara já para trás o Rio Limpopo
que abraça num gesto afectuoso a Vila do Chai-Chai e percorria agora a
costa de Moçambique que lhes era bem, familiar sobrevoando o rosário de lagoas
que se prolongam pela beira-mar, junto às povoações de Chidenguele, Quissico e
Inharrime.
À medida que se aproximava da linha da costa na rota que conduziria o
GAZA III até ao Chinde, a cor verde esmeralda das águas do oceano Índico
anunciava a aproximação do fundo de areia e coral donde emergiam as cinco ilhas
do arquipélago do Bazaruto conhecido por “Pérola do Oceano Índico”.
Mal
se começa a definir no horizonte o grande delta do rio Zambeze com os quatro
braços em forma de um enorme leque e já sobrevoam a ilha de Pambane donde se eleva
a Vila do Chinde cuja população acolheria surpreendida os nossos ousados
aviadores na sua primeira aterragem ao fim de quase cinco horas de voo após a
descolagem do Chai-Chai.
A
paragem foi de curta duração mas o suficiente para esticar as pernas e
reabastecer os tanques com gasolina de
automóvel.
Cerca
das treze horas descolaram finalmente do Chinde sobrevoando o rio Zambeze até à
confluência com o rio Chire no Caia cujo leito sobe em direcção às terras altas
onde mora a sua nascente.
As
terras montanhosas que envolvem a cidade de Blantyre já se fizeram anunciar
quando o GAZA III passou junto ao maciço de Milange cujo pico mais alto se projecta até os três mil metros obrigando-os
a voar a uma altura de treze mil pés.
À
medida que se aproximavam da cidade, a topografia do terreno envolvente
apresentava-se aos olhos dos nossos viajantes de uma forma irregular com
elevações que variavam entre os setecentos e os mil e seiscentos metros de
altitude recordando-lhes que a cidade se encontra situada no bordo oriental do
ramo sul do “Grande Rift Oriental”.
Na
manhã do dia 2 de Abril, depois de uma noite reconfortante, descolaram de manhã
cedo com destino a Mbeya aproveitando a frescura da noite que se prolongaria
por mais umas horas
Na
direcção de Mbeya, ergue-se um conjunto de dez ou mais crateras de antigos
vulcões adormecidos. De modo a evitar o seu sobrevoo e principalmente da enorme montanha de Rungwe que se destaca de
entre as outras pelos seus quase três mil metros de altitude, Torre do Valle
havia traçado um desvio para ocidente
com escala em Mpika.
À
medida que se aproximavam de Mbeya começaram a observar à distância uma descomunal
célula de tempestade formada por cúmulos-nimbos que se faziam anunciar por
relâmpagos que rasgavam com uma frequência impressionante as nuvens cinzentas
que se projectavam no horizonte num cenário que se previa complicado com chuva
torrencial e fortes ventos em todas as direcções.
E
foi o que aconteceu. A aproximação ao campo de aterragem constituiu mais uma
prova da perícia de Torre do Valle que conseguiu uma aterragem segura da sua
frágil aeronave sacudida por fortes rajadas de vento no meio de forte aguaceiro
que encharcava o terreno onde ela finalmente se imobilizou.
A
noite foi passada numa modesta pensão de um comerciante indiano onde o telhado
de zinco amplificava o ruído do granizo que caía acompanhando as fortes
trovoadas que se mantiveram em Mbeya por algumas horas e que lhe fizeram lembrar
a conhecida tempestade da ópera de Wagner, “o Navio Fantasma”.
Somente
naquela manhã, respirando uma atmosfera refrescante que a forte tempestade da
tarde anterior havia limpo, conseguiram ver como as colinas das altas montanhas
que rodeavam a povoação se vestiam de urzes e fetos num maravilhoso cenário pintado
com fortes tons de verde, amarelo e lilás.
Depois
da tempestade vem a bonança e seguramente assim aconteceu permitindo ao GAZA
III descolar com destino a Dodoma, a próxima escala antes de Nairobi, numa
atmosfera que lhes permitia uma visibilidade quase ilimitada.
Torre
do Valle, num pequeno briefing na noite após a chegada a Dodoma, chamara a
atenção a Amadeu para as maravilhas naturais que iriam contemplar a caminho de
Nairobi, cidade erguida numa região de altas montanhas, ela mesmo estabelecida
a cerca de mil e setecentos metros de altitude.
Haviam
já voado cerca de um terço da viagem numa altitude confortável de catorze mil
pés, cerca de quatro mil e duzentos metros, quando começaram a avistar à
direita da rota o imponente monte Kilimanjaro cujas neves eternas bem lá no
alto reflectiam os raios do Sol já muito perto do Zénite dominando com os seus
cerca de cinco mil e novecentos metros as crateras de outros vulcões menores
como o Meru que protegia a tímida povoação de Arusha dos ventos quentes do
Norte.
Sobrevoavam
já o lago Manyara e em breve surgiu a gigantesca cratera de outro vulcão
extinto que Torre do Valle anunciou a Amadeu, gritando para se fazer ouvir por
entre o ruído do motor:
-
Ngorongoro.
A verdadeira “Arca de Noé”. O maior Jardim Zoológico
criado pela Natureza!
E
apontava na direcção de uma enorme caldeira com uns dezanove quilómetros de
diâmetro que se formara na sequencia do desmoronamento de um primitivo vulcão. Disposta em forma de um
enorme anfiteatro, achava-se coberta por uma vegetação exuberante onde habitam durante
toda a sua vida, diferentes espécies animais como elefantes, rinocerontes, leões,
chitas, zebras, gnus e avestruzes.
Caçador
de caça grossa, profundo apaixonado pela vida ao ar livre, Torre do Valle não resiste
a ver de mais perto tamanha riqueza animal e desce dos catorze mil pés para os
quatro mil pés na direcção do Lago Magadi, um lago de água salgada que descortina
no meio da cratera e que lhes proporciona a mais espectacular visão de um imenso
bando de vistosos flamingos de flamejante cor-de-rosa.
Nairobi
acolheu confortavelmente os nossos aviadores que se instalaram no Hotel Stanley
em cujas instalações se recompuseram do longo dia em que haviam efectuado sete
horas de voo repartidas por duas etapas.
De
acordo com o plano de voo concebido à saída do Chai Chai, Torre do Valle de
modo a evitar a sucessão de vulcões que se prolongam pela falha do Quénia até Asmara na Etiópia, ruma directo a Kisumu
pequeno porto na margem oriental do grande Lago Vitória de modo a alcançar rapidamente a nascente do Nilo Branco
e seguir o seu curso até à cidade de Juba, no Sudão Anglo Egípcio onde
pernoitariam depois de mais de seis horas voadas.
Juba,
uma pequena povoação na margem esquerda do Nilo perto do Equador, acolheu os
nossos aventureiros numa atmosfera abafada e húmida com uma temperatura
escaldante não obstante terem chegado já perto do fim do dia!
Valeu-lhes
a afabilidade de dois comerciantes de origem grega que se haviam estabelecido
em Juba nos princípios dos anos vinte.
Com
a simpatia dos seus anfitriões e umas bebidas frescas que acompanharam uma farta
refeição de carne de caça abatida naquela manhã, os nossos dois aviadores
conseguiram recompor-se fisicamente para a próxima etapa que os levaria até Malakal.
Esta
seria decerto uma tarefa que se anunciava bastante arriscada já que tanto Juba
como Malakal limitavam aproximadamente a Sul e a Norte uma extensa área
conhecida pelo Sudd.
O
Sudd é uma imensa região de planície pantanosa do Sudão formada pelas águas do
Rio Nilo e a sua área abrange uma superfície variável entre os trinta mil
quilómetros quadrados e os cento e trinta de acordo com a estação chuvosa. É certamente
a maior área húmida do mundo cortada por imensos canais frequentados por
crocodilos e hipopótamos, onde cresce o luxuriante papiro e o jacinto de água num
emaranhado de ilhas flutuantes que dificultam drenagem das águas após cada cheia cíclica do rio Nilo.
O
Sudd é por isso considerado quase intransponível quer por terra quer por embarcações
o que aconselharia, como alertavam os seus anfitriões, que o voo para Malakal
não se realizasse numa rota directa mas utilizando em alternativa um desvio, que
embora mais longo seria mais seguro, sobrevoando a estrada que na margem
direita do Nilo ligava as duas povoações.
Acrescente-se
que numa medida complementar as autoridades de Juba e Malakal informavam-se
reciprocamente por via telegráfica das partidas e chegadas das aeronaves voando
entre estas duas localidades.
Torre
do Valle confiante no funcionamento impecável do motor do seu GAZA III que se
comportava “como um verdadeiro relógio suíço”, optou pela rota directa e após
um voo de quatro horas em que percorreu os quinhentos e cinquenta quilómetros
aterrou em Malakal. Nesta rota poupou cerca de cem quilómetros em relação à
alternativa aconselhada pelos seus anfitriões de Juba.
Se
de Juba lhes ficara a ideia de que haviam sentido muito calor Malakal devia
estar muito perto do “inferno” já que o ar quente se tornava irrespirável numa
temperatura constante ao longo das vinte e quatro horas do dia de cerca de
quarenta graus centígrados. Estavam decerto no lugar mais quente do Sudão,
comentava Torre do Valle para o seu companheiro à medida que se dirigiam para
os três habitantes que acorreram a recebe-los no pequeno campo de aviação.
Depois
de uma noite mal dormida apressaram os preparativos da descolagem com destino a
Cartum.
Posicionavam
já o GAZA III voltado de frente para a direcção donde soprava o vento sempre
quente, acenando um adeus de despedida para os três anfitriães que os receberam
na véspera.
E
foi então que sucedeu o insólito incidente que veio interromper esta viagem que
decorria numa normalidade ideal.
Acelerando
de forma contínua para a descolagem, o motor ia aumentando as rotações para o
valor máximo necessário a atingir para a descolagem, quando se ouviu um enorme estoiro
acompanhado de forte vibração que não lhe deixava sequer distinguir os
instrumentos do motor que parecia estar prestes a desintegrar-se.
O
avião mal se elevara no ar e as rodas do trem ainda estavam a poucos
centímetros do chão quando Torre do Valle numa decisão rápida abortou a
descolagem cortando de imediato os magnetos para imobilizar o motor.
Estacionado
o GAZA III, ao abrir o “capot” do motor depressa se apercebeu de um enorme
buraco no “carter” por onde saía a biela de um cilindro.
Desanimado
o Amadeu, encostado ao montante da asa esquerda murmurava incrédulo:
-
Se
isto tivesse acontecido ontem depois de deixarmos Juba e já sobre o Sudd ... e
se tivéssemos sobrevivido ao possível acidente, de certo nunca seríamos
encontrados numa área de quinhentos quilómetros de comprimento por setecentos e
cinquenta de largura.
Ouvindo-o,
e recordando o alvitre dos seus anfitriões gregos da véspera, Torre do Valle
acrescentou:
-
É
muito certo o provérbio antigo que diz que “a conselho de amigo, não feches o
postigo”... Tivemos muita sorte! Mas
quem iria supor que um motor que havia funcionado sempre tão bem havia de
sofrer uma “panne” tão grave?
Homem
de decisões rápidas, passados os momentos de natural desânimo Torre do Valle
depressa controla a situação começando por se inteirar da possibilidade do
transporte da aeronave até Cartum já que em Malakal não havia quaisquer meios para
a reparação do motor.
Felizmente,
informaram-no da existência de um barco que fazia a ligação fluvial a Cartum
com uma frequência quinzenal e que por sorte deveria chegar dentro de dois dias
a Malakal.
Superado
o desânimo inicial, Torre do Valle passou a programar tranquilamente todas as
acções para obviar este contratempo. De imediato combinou com o seu companheiro
o Amadeu prepararem o GAZA III para o embarque no transporte fluvial removendo
a fixação anterior das asas permitindo articulá-las para a parte de trás de
modo a ficarem recolhidas no comprimento da fuselagem como as asas de uma
gaivota em terra.
E
no meio desta actividade energicamente desenvolvida numa reacção aquele revés,
eis que surge uma ajuda inesperada com a passagem de um aviador solitário que
num pequeno Gipsy Moth de dois lugares escalara Malakal e lhe ofereceu uma
boleia até Cartum ponto de escala da sua viagem.
O
Amadeu ficaria em Malakal orientando o embarque do GAZA III e seguiria dali a
dois dias com o avião convenientemente arrumado no convés do barco numa viagem pelo
Nilo que duraria cinco dias.
Torre
do Valle por seu lado, aproveitando a ajuda imprevista, acomodado no banco dianteiro,
encolhido o mais possível no assento para se proteger da deslocação do vento,
acabou por adormecer vencido pelas emoções que acabara de viver.
Chegado
a Cartum, uma cidade localizada na confluência do Nilo Branco com o Nilo Azul
cujas águas se juntam para formar o grande Nilo, depois de instalado numas
instalações precárias que agravavam a sensação sufocante que uma temperatura de
trinta e oito graus provocava na firmeza das decisões tomadas, Torre do Valle
preparou o estaleiro onde iria proceder à recuperação numa pequena garagem de
reparação de automóveis.
Torre
do Valle contacta telegraficamente com a fábrica DeHavilland em Inglaterra para
que lhe fosse enviado pela Mala Aérea o material necessário para a reparação do
motor do GAZA III.
No
dia catorze daquele mês de Abril o Gaza III chegou ao embarcadouro fluvial e
foi posteriormente transportado para o aeródromo de Cartum onde foram avaliados
os estragos verificados à descolagem de Malakal.
Um
parafuso da fixação da biela à cambota soltara-se e esta, descendo a grande
velocidade, perfurara o carter provocando uma enorme abertura por onde se
escapara o óleo do motor.
A
recuperação ocupou os nossos aviadores durante seis dias em que se esforçaram num
horário de trabalho quase contínuo para deixarem rapidamente aquela cidade onde
um ambiente sufocante provocado por temperaturas de trinta e oito graus, lhes
secava a garganta as mucosas do nariz e dos olhos!
Torre
do Valle lamentava-se por telegrama enviado ao seu amigo Calçada Bastos em
Lourenço Marques, como o fazia regularmente
no decorrer da sua viagem sempre que encontrasse facilidade de correios:
- Tive
de mandar vir do Cairo vários empanques e anilhas para completar o material
sobressalente enviado de Londres. A montagem do motor decorre porém com uma
lentidão capaz de “fazer perder a paciência a um china”.
Todos
estes inconvenientes provocaram em Torre do Valle um sentimento de dúvida em
relação à confiança que sempre depositara no funcionamento do motor do seu
avião.
Com
um atraso de vinte e quatro dias sobre a data planeada descolaram de Cartum
seguindo Nilo até a Wadi Halfa, uma cidade situada junto à margem oriental do
Rio Nilo, dez quilómetros depois da Segunda Catarata, na fronteira com o Egipto
e na margem do grande “Lago Nubia” que designa a parte sudanesa do grande lago da
barragem de Assuão construída entre 1899 e 1902 com recursos a capitais
ingleses. Esta primeira barragem foi alargada em 1911 e na altura em que os
nossos aviadores lá chegaram, o lago estava na fase final do seu enchimento.
A
cidade e os seus arredores ricos em antiguidades e ruinas de antigos monumentos
Núbios, fica no términus da linha de caminho de ferro vinda de Cartum a partir
da qual as mercadorias eram transferidas para os “ferries” operando no lago.
No
dia dois de Maio deixaram finalmente aquela cidade situada junto ao deserto com
uma escassa mas acolhedora população que não lhes conseguiu proporcionar
alojamento capaz de os ajudar a suportar as temperaturas exageradamente altas
que acresciam ao vento quente vindo da margem ocidental do Lago.
Voavam
já com destino à cidade do Cairo seguindo o leito do Rio Nilo que corria num trilho
de suaves meandros em direcção ao
Mediterrâneo.
À
medida que se aproximavam do delta do Nilo contemplavam surpreendidos a intensa actividade agrícola que prosperava
numa faixa de muitos quilómetros de cada lado do Nilo numa visão de verdejantes
culturas que atestavam a importância deste recurso hídrico que levou o historiador
grego Heródoto de Halicarnasso, geógrafo e historiador conhecido pelo pai da
história, a declarar já no século quinto aC que “ O Egipto é a dádiva do Nilo”.
Estavam
a cerca de três horas do destino, a pouco mais de meio caminho entre Wadi Halfa
e o Cairo quando Torre do Valle começou a aperceber-se que algo funcionava mal
no motor do GAZA III – à medida que o tempo passava, a pressão do óleo do motor
que indicava um valor de quarenta e duas libras ia descendo para quarenta até
chegar ao trinta e três que sugeria uma fuga de óleo e que o levou a subir para os quinze mil pés prevenindo a
possibilidade de, caso o motor gripasse, poder escolher um local onde aterrar.
Atingida a altitude pretendida reduziu as rotações do motor para ver se
concluía o voo.
A
acrescentar a esta anómala situação os dois tanques de gasolina apresentavam
pequenas fugas que se anunciavam pelo cheiro a combustível no habitáculo e que
obrigaram Torre do Valle a abrir a janela de correr do seu lado esquerdo para
retirar os gases capazes de provocar um fogo a bordo!
A
situação era pois deveras complicada: por um lado era aconselhável o voo o mais alto possível para o caso de griparem
o motor ser possível um planeio prolongado; por outro lado, pensava ele, “se
pudesse voar a cinco metros do chão, em caso de se declarar um fogo teriam talvez
tempo de se safarem”!
Por
isso, logo que chegaram à cidade do Cairo, Torre do Valle muito preocupado com
o seu GAZA III, tratou de alugar uma garagem junto ao “souk” numa das vielas
onde fervilhava uma grande actividade comercial de pequenos vendedores e
desmontou completamente o motor substituindo a maior parte dos componentes da fixação
das bielas à cambota após o que realizou uma montagem criteriosa do motor. Em
relação à fuga de combustível optou também por uma vistoria minuciosa e a
substituição das torneiras, empanques e anilhas nos dois tanques.
Amanhecera
quente o dia três de Maio com a mesma temperatura de trinta e nove graus com que
anoitecera.
-
Os
meus sinceros parabéns por este seu quadragésimo quinto aniversário - cumprimentou
o Amadeu abraçando Torre do Valle num gesto afectuoso tentando afastar a
tristeza que adivinhava no olhar do seu companheiro.
O
planeamento da viagem elaborado com tanto cuidado previa que ao fim de onze
dias de voo, ou seja por volta do dia doze de Abril estariam em Lisboa já
recuperados da viagem possibilitando a Torre do Valle festejar os cinquenta
anos de vida junto da família e dos amigos.
Mas
quantas vezes sucede que pensamos ter programado a nossa vida de maneira a redundar
em sucesso, mas depois resulta tudo ao contrário porque se ergue algo que não
foi devidamente previsto!
- “Bem
sei que que a “panne” que eu tive é uma das que se dão uma vez em mil, mas como
aconteceu uma vez podia-se repetir”, lamentava mais tarde ao seu amigo
Calçada Bastos!
Torre
do Valle, homem de acção e decisões rápidas, tratou de tornear estas
adversidades:
-
envia uma mensagem telegráfica para a sua mulher anunciando que
até catorze de Maio estaria em Portugal para a beijar e às sua queridas filhas;
-
seguidamente lança-se com entusiasmo no prosseguimento da aventura.
Na
manhã de onze de Maio o GAZA III descolava do aeródromo do Cairo com destino a
Bengazi voltando para leste numa inclinação que permitia aos nossos aviadores
rever aquela enorme cidade que apresentava aqui e além um elegante toque
parisiense na arquitectura dos seus mais representativos edifícios.
Amadeu
toca no ombro de Torre do Valle apontando para a Necrópole de Gizé situada num
planalto que se distinguia perfeitamente a leste da cidade, e que por insistência do seu companheiro acabara por
visitar:
-
Amadeu,
não há necessidade de continuares agora aqui porque o trabalho mais difícil está
acabado. Restam somente pequenos ajustamentos que estão a correr a bom ritmo
que não justificam a tua presença neste
espaço tão apertado.
Por isso vai visitar a cidade do
Cairo, passeia pelo Nilo e sobretudo não te esqueças de visitar a Esfinge e as
três pirâmides que me irás depois dizer como se chamam.
E
Amadeu repetia numa voz aprazível que se entendia com perfeição:
-
Quéopes
( a grande pirâmide ) ... Quefren ( a
mais pequena ) ... e Miquerinos ( a menor das três ) !
Voavam
agora numa rota paralela ao Mar Mediterrâneo em direcção à cidade de Bengasi fundada pelos gregos em 446
aC e situada no golfo de Cidra na Líbia nos verdes oásis junto das áreas mais
baixas da planície costeira.
No
ano em que Torre do Valle chegou a Bengasi, a população era composta por cerca de
trinta por cento de colonos italianos e que teve como consequência um rápido
crescimento económico na segunda metade de 1930.
A viagem retomava agora o
ritmo com que se iniciara ajudado pela presença do Mediterrâneo que com a sua
cor verde esmeralda insuflava um novo ânimo aos nossos protagonistas.
O motor voltava a sugerir a
comparação por vezes proferida de que trabalhou como um “autêntico relógio
suíço” nas oito horas que durou o voo desde que descolaram do Cairo!
O final da expedição estava
já próximo e as sete horas e cinquenta minutos que voaram até à cidade de Gabés
na Tunísia foi mais uma etapa que adiantaram na contagem final da viagem.
Gabés localizada a sul da
cidade de Tunes e junto à ilha de Jerba encantou-os pelas suas lindas praias de
águas transparentes cobrindo uma fina areia branca, mas encantou-os sobretudo as
suas palmeiras tamareiras de aspecto diferente das palmeiras que crescem nas
praias do Índico, os coqueiros, a que estavam habituados a encontrar.
Com o GAZA III a portar-se como quando Torre do Valle o voou pela
primeira vez em 1931, o troço de Gabés a Tanger numa distância de mil e quatrocentos
quilómetros foi decerto o mais comprido e aquele em que a modificação dos
tanques foi posta à prova pois que lhes permitiu voar durante nove horas até ao
destino.
O voo envolvia certos
riscos já que teriam de voar no meio de dois alinhamentos paralelos de
montanhas que constituem a Cadeia do Atlas e que separa os Oceano Atlântico e o
Mar Mediterrâneo do grandioso deserto do Sahara. O voo foi executado a uma
altitude de catorze mil pés de modo a assegurar, em caso da falha do motor, a
possibilidade de um planeio suficiente para procurar na região dos lagos
salgados existente entre estes duas fileiras de montanhas um local para uma
aterragem segura.
Chegaram a Fez no fim de
uma tarde radiosa em que o Sol prestes a deitar-se para o lado das montanhas do
Alto Atlas iluminava ainda os minaretes das mesquitas da Almedina rodeada pela
velha muralha que escondia um labirinto de ruas estreitas de coloridos “souks”
derramando cheiros intensos de especiarias.
Fez foi durante várias épocas
a cidade capital do Reino de Marrocos que a partir de mil novecentos e doze
passou a ser um protectorado francês e que escolheu a cidade de Rabat para nova
capital do reino.
A viagem estava prestes a
terminar e a excitação da expectativa da próxima etapa quase não os deixou dormir.
De Fez seguiriam directos a
Tanger para uma derradeira aterragem em território africano cumprindo as
formalidades aduaneiras da saída de Marrocos com destino a Portugal onde
chegariam nesse mesmo dia catorze de Maio.
Voavam agora mais
descontraídos adivinhando já o cheiro perfumado dos campos alentejanos cobertos
de flores de Maio e em breve sobrevoavam o Estreito de Gibraltar descobrindo à
direita da sua rota o altaneiro “ penedo “ de Gibraltar.
Torre do Valle gritou para
que Amadeu o ouvisse, apontando para o lado esquerdo do Golfo de Cádis:
-
Já vejo terras de Espanha e
mais além, as praias de Portugal! – numa referência aos versos da “Nau Catrineta” – Além, mesmo à nossa frente, está a Foz do
Guadiana. E em cada margem a cidade de Aiamonte na margem esquerda e a cidade
de Vila Real de Santo António na margem
oposta. Consegues ver?
Faltava menos de hora e
meia e já conseguiam avistar o grande estuário do Rio Tejo e mais além, no meio
do imenso leito que se espraiava num enorme mar, (o “mar da palha” como era conhecido),
já se avistavam as construções e o aeródromo sede do Grupo Independente da
Aviação de Bombardeamento como era designado o complexo militar do aeródromo de
Alverca que em breve sobrevoavam anunciando a sua chegada.
Eram precisamente treze
horas dessa tarde de catorze de Maio de mil novecentos e trinta e tês quando o
GAZA III, após duas voltas a baixa altura anunciando a sua chegada, tocou de
mansinho a pista de Alverca e iniciou a rolagem para o local de estacionamento
onde não se encontrava vivalma. Por fim começaram a aparecer os militares da
guarnição que um pouco espantados com a inesperada aparição interpelaram os
nossos dois aviadores em francês:
- Quando
pensam partir?
- Não somos franceses.
Somos portugueses e acabamos de chegar vindos
de Lourenço Marques!
Aproximou-se o oficial de
dia que ouvindo o relato da chegada dos nossos heróis que ninguém esperava não
obstante um cabograma que Torre do Valle tivera o cuidado de enviar de Tanger
anunciando a chegada a Alverca por volta das treze horas tratou de
proporcionar-lhes um caloroso acolhimento de tal modo espontâneo que nunca mais
puderam esquecer!
Torre do Valle acabara de
voar mais de doze mil quilómetros por lugares de África onde a vastidão dos
horizontes conferem um sentimento de grandeza e liberdade que, comparando agora
com a “pequenez do horizonte da sua Pátria onde as distâncias de tão curtas não
lhe conferiam espaço suficiente para o voo das suas asas”, tem mais tarde para
com o seu amigo Calçada Bastos o
seguinte desabafo numa carta que lhe escreveu:
“ Compreendo agora porque a aviação civil está tão pouco desenvolvida em
Portugal. Isto é muito pequeno, duas horas para Sul, três horas para Norte e
uma hora para Leste e está-se fora de Portugal; os aeródromos são poucos. Cada
vez que se sai de Portugal é necessário pedir autorização aos Governo das
Nações por onde se passa e isso leva muito tempo e sobretudo não tem havido por
parte do Governo interesse algum.
Esta viagem mereceu uma
notícia publicada no dia seguinte à chegada a no “Diário de Lisboa” com o
seguinte título:
ULTIMAS NOTÍCIAS – Um voo
de Lourenço Marques a Lisboa – Aterrou ontem em Alverca um aviador que fez a
viagem em onze dias de voo.
Ecoavam ainda as últimas
palavras da narrativa que o meu passageiro Acácio Augusto Pires iniciara há
cerca de três horas após a descolagem da Beira e que prendera a minha atenção
pelo modo apaixonado da sua descrição quando estávamos prestes a chegar a
Lourenço Marques cujo casario se divisava lá bem ao longe destacando-se ao
fundo do vale do Infulene, anunciando o fim da nossa viagem.
-
Caro amigo – murmurei após uns minutos
de silêncio - O que acaba de me contar foi
algo de extraordinário que eu desconhecia: o “raid” aéreo proposto e realizado
pelo piloto civil Armando Torre do Valle com a participação do seu companheiro
Amadeu de Araújo!
A maneira como o relatou deixou-me encantado e agradecido.
-
Acácio Pires olhou-me demoradamente como que à procura das
palavras apropriadas e adiantou - Exactamente
por isso, e como sei que é um ouvinte atento tive o maior prazer em faze-lo! – e
prosseguiu - Mas agora que se declarou
encantado com esta aventura, vou pedir-lhe que me prometa algo que para mim é
muito importante. Que irá escrever uma história relatando a proeza que acaba de
escutar para que se torne conhecida a herança que estes “pioneiros” da aviação
nos legaram e sobretudo o que eles representam no nascimento da Aviação Civil em
Moçambique.
Quase cinquenta anos após esta viagem
eis-me aqui e agora satisfazendo o desejo e cumprindo a promessa que fiz ao meu
passageiro, Acácio Augusto Pires um admirador confesso de
Armando de Vilhena de Barros e Vasconcelos da Torre do Valle.
VILA DE PAREDE, 3 DE MAIO DE 2014
J. Primavera
5 comentários:
Uma bela história que permitirá a quem a ler saber o que foi este verdadeiro e épico raid aéreo de um moçambicano que foi sem sombra de dúvida o "pai da aviação" naquele belo país à beira do Índico plantado.
Obrigado Joaquim Primavera
Foi com imenso prazer que li este relato do raid Xai-Xai a Lisboa do Torre do Valle e Amadeu Araújo. Bem Haja...
Que o Cmte Primavera nos continue a brindar com mais belas histórias da nossa querida terra,escritas de uma forma cativante e fáceis de ler!Não lhe conhecia essa faceta de escritor.Já vai tendo material para proceder á publicação de mais um interessante livro.Um muito obrigado, com um abraço,bzzzz.
Caro Senhor J. Primavera,
Venho agradecer o seu texto: sou neto de Armando Torre do Valle, que teve dois filhos, Manuel e Vasco, sem descendência, e uma filha, Maria, que teve 10 filhos dos quais sou o quarto.
Como calcula, na família, este feito do meu avô é muito celebrado. Inclusivé, minha Mãe e alguns dos meus irmāos fizeram a doação de vários objetos de meu Avô, entre os quais o logbook dessa viagem, ao aeroClube que ostenta o nome dele, no Chai Chai. Não conheço, ainda, essas paragens, mas percorro-las de memória pelas histórias que a nossa Avó Emabme contava em longos almoços durante a minha adolescência. Mais uma vez, bem haja pelo relato tão interessante quanto importante para a história da Aviação Civil de Portugal.
a) António Manuel Torre do Valle Avillez
Caro Sr. J. Primavera,
Venho agradecer-lhe o ótimo relato que fez da viagem de meu Avô. Como calcula, na família esta aventura é muitas vezes citada. Os nosso avós tiveram 3 filhos, dois rapazes, Manuel e Vasco, e uma menina, Maria. Eles não tiveram descendência, mas ela teve 10 filhos, dos quais sou o quarto.
Minha Mãe, que nasceu no Chai Chai, e alguns dos meus irmãos inclusivé fizeram a doação ao Aero Clube que hoje ostenta o nome do meu Avô, de vários objetos dele, entre os quais o logbook dessa viagem.
Mais uma vez obrigado por seu interessante e importante relato deste pioneiro da aviação civil de Portugal.
a) António Manuel Torre do Valle Avillez
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