Manuel Maria Rocha prestes a descolar da pista
do Chai-Chai, instalado a bordo do DeHavilland DH.60X Cirrus Moth que sofreu um
acidente na Baía do Espírito Santo em Lourenço Marques e de cujos salvados,
comprados em leilão alfandegário, conseguiu reconstruir esta aeronave.
MEMÓRIA 21ª
“O dia em que o Comandante
Manuel Maria Rocha, o “patriarca do Dakota” realizou o primeiro voo da
Linha Aérea Imperial dos TAP que ligou Lisboa às cidades de Luanda e Lourenço
Marques”.
A
história que vos escrevo conta a vida extraordinária de um piloto invulgar que acaba
num final triste, já que a vida nem sempre é aquela mãe afetuosa que nos protege
dos desacertos da nossa conduta!
Contrariamente
ao jeito que costumo escrever, esta história principia precisamente pelo seu termo!
Se
estão recordados, vai já distante aquele dia do mês de Março de 2008 em que
escrevi a primeira MEMÓRIA PARA UM BUSH PILOT.
Resolvi
então ensaiar a escrita de uma sucessão de pequenas histórias para enaltecer
aqueles pilotos que voam nas regiões mais adversas dos distintos continentes,
em especial no africano, mais particularmente em Moçambique onde nasci e onde comecei
esta aliciadora aptidão de “voar”, pilotos com quem aprendi e partilhei
experiências por vezes estranhas todavia maravilhosas!
Estávamos
precisamente em finais de 1984 no momento em que ocorreram os factos a que esta
MEMÓRIA se reportam.
Preenchia
então os tempos de folga da minha escala de voo, passando em revista as
novidades legislativas aeronáuticas no gabinete jurídico da Associação dos
Pilotos de Linha Aérea no primeiro andar do edifício daquela Associação.
Absorvido
no trabalho de compilação de novos elementos não me apercebi naquele dia da
chegada de um homem de cabelos brancos que me interpelou num sussurrar quase imperceptível:
-
Comandante Primavera?
-
Observando aquela cara que
me recordou algo de muito recuado, olhei-a aguardando por mais umas palavras...
-
Permita-me que me apresente
– e continuou com um aparência cansada
que o tornava ainda mais velho - chamo-me Manuel Maria Rocha e fui
comandante de aviões na DETA e nos TAP.
Num
ápice passou pela minha mente a lembrança que me ficara daquele lendário nome, assomando
repentinamente aos meus olhos a imagem (como a que encima esta história), de um
jovem sentado no cockpit de um avião DeHavilland DH.60X Cirrus Moth, na pista do Chai-Chai olhando para o fotógrafo que fixaria
para a posteridade a incontida alegria daquele rosto de menino de grandes olhos
sorrindo de felicidade porque iria voar de imediato, mas que agora se
apresentava à minha frente destroçado por tantos infortúnios vividos numa existência
que eu iria em breve conhecer para convosco compartilhar!
Levantando-me, cumprimentei:
- Comandante Rocha.
É um grande privilégio conhecê-lo finalmente. A que devo a sua presença nesta
casa que poderia também ter sido sua?
Numa
voz magoada e num falar arrastado disse-me que somente ali viera para pedir à
Associação dos Pilotos Portugueses de Linha Aérea uma ajuda que permitisse à
sua filha concluir a frequência do seu curso universitário já que ele, por
falta de recursos, nunca lhe poderia proporcionar.
E
terminava com a voz embargada por um soluço:
- A reforma que recebo
agora que foi revista, no valor de 4000$00, não dá para viver a vida decente
que sempre idealizei e a que, por justiça, tenho direito para a minha velhice.
Era na
altura presidente da APPLA o nosso colega, o Comandante Luís Vieira da Silva
que se lembrava também daquele nome no pouco tempo que voou em Moçambique e que
se propôs interceder junto do "Fundo de Entreajuda dos Pilotos da
ASPAC" com a finalidade de obter o apoio que o nosso colega solicitara.
Conseguiu
finalmente que fosse atribuído um subsídio pecuniário que se prolongou para
além do final da sua vida, finada a 12 de Abril de 1986, ano e meio depois do
nosso encontro na APPLA, até que a filha acabasse a licenciatura.
Esta
história começa agora aqui:
Corria
o ano de 1902 quando Manuel Maria Rocha nasceu em Moçambique, numa pequena
povoação fundada pelos portugueses em 1887 na região da Arângua e conhecida por
Chiveve.
Era uma
região pantanosa junto à foz do rio Púnguè protegida do oceano Índico por uma
restinga de dunas de areia branca e inundadas pelas águas salgadas das marés
cheias que se prolongavam pelos braços do rio Chiveve alagando os imensos
mangais com a sua fauna anfíbia.
A
fixação humana nesta povoação era fortemente condicionada pela insalubridade decorrente
de um clima tropical com elevadas temperaturas aliadas a uma excessiva
humidade, responsáveis pelo aparecimento de patologias tropicais como o
paludismo e a bilharziose.
O povoado
foi rebaptizado de Beira como homenagem ao primogénito herdeiro presuntivo da
Coroa de Portugal, Dom Luís Filipe filho do Rei Carlos I, a quem era atribuído
o título de “Príncipe da Beira” e que posteriormente, em 1907, visita
Moçambique levando consigo o decreto real de 29 de Junho que eleva a Beira à
categoria de cidade.
A
família pouco se demorou por aquela cidade vindo depois para Lourenço Marques
onde o pai Rocha acabara por arranjar um emprego melhor remunerado que lhes
permitiu morarem numa modesta habitação de madeira e zinco a caminho do alto da
Maxaquene.
Durou
pouco tempo aquela simples estabilidade familiar já que uma doença possivelmente
contraída na Beira, veio roubar definitivamente a presença do seu patriarca.
Para
um jovem que teria na altura pouco mais de doze anos de idade cedo terminaram
as brincadeiras de garoto junto dos seus companheiros, nas loucas correrias
pelas ruas do bairro, desertas dos raros automóveis que aí circulavam,
dominando com o auxílio de ganchos, “fabricados” com arame retirado dos
estendais da roupa, os arcos de ferro lançados em ferozes competições!
Tempos
depois os estudos do Curso Comercial que a mãe o obrigara a frequentar após a
morte do pai tiveram de ser interrompidos quando o irmão mais velho, o sustento
da casa, foi mobilizado para a guerra que o "Bosh" travava com o exército
português na fronteira norte de Moçambique com o Tanganica junto ao rio Rovuma.
Manuel
Maria era agora o sustento da casa que a Mãe geria com parcimónia utilizando os
escassos haveres que lhe restavam. Teve de abandonar os estudos para ir
trabalhar para a Oficina dos Caminhos de Ferro em Lourenço Marques onde recebeu
o seu primeiro vencimento de dois tostões por dia, iniciando desde então a luta
entre a necessidade de trabalhar e o interesse em se ilustrar usando a escola
prática da vida já que a outra, a Escola Comercial que tivera de abandonar, lhe
estava para já interditada.
O
irmão preocupado com a situação em que ficaria a família em resultado da sua
mobilização, antes de deixar o seu emprego na companhia de Carros Electricos de
Lourenço Marques onde trabalhava na secção de fundição, conseguiu que o seu
chefe, um engenheiro inglês, admitisse o irmão “caçula” para o seu lugar, com
um vencimento mensal de seis xelins por dia, o que representava um substancial
aumento no diminuto rendimento da família.
Jovem
ladino, possuidor de uma ambição suportada por uma enorme sede de conhecimento,
cedo foi revelando aos seus superiores a capacidade de aprender e quando o
irmão, depois de desmobilizado, retomou o lugar ocupado temporariamente pelo
Manuel Maria, o engenheiro de nacionalidade austríaca responsável pelos
serviços electricos, conhecendo o fascínio que a elecricidade e os motores exerciam
sobre o jovem aprendiz ofereceu-lhe a transferência para a Central Electrica, ao
mesmo tempo que se disponibilizava para lhe dar aulas teóricas em sua casa onde
passaria a desfrutar ainda de um farto almoço.
Manuel
Maria diria mais tarde que o tremendo esforço que desenvolvera na aquisição de
livros que lhe proporcionassem os conhecimentos necessários ao desempenho da incumbência
que o engenheiro chefe da central Electrica, lhe estabelecera só foi possível
como dizia porque “conhecendo as
dificuldades de vida porque passei depois do falecimento do meu pai, decidi
impor a mim próprio valorizar-me tanto quanto possível para ter uma situação
desafogada na vida” e acrescentava, ainda que“ durante todo esse tempo e até depois, nunca fui a um cinema, não
frequentei cafés, porque tinha uma grande meta a atingir a de adquirir o maior
número de conhecimentos necessários para afastar de mim a situação de ignorante
regressando à escola comercial que fui obrigado a interromper”.
Começa
então a ascensão do jovem no domínio dos motores electricos da central que
funcionava com combustível que provinha do carvão de antracite proveniente das
minas do Transval na África do Sul.
Surpreendentemente
o jovem Manuel subindo sem pressas todos os degraus que o seu chefe lhe
proporcionou, viu-se de um momento para o outro, aos dezoito anos de idade,
promovido a auxiliar directo do encarregado pelo funcionamento da central electrica
com um vencimento de dois xelins, um aumento de mais de cem por cento do seu
anterior salário.
Mas a
sua ambição não cabia de certo num lugar cujas decisões dependeriam sempre de
um superior hierárquico e assim que surgisse uma oportunidade de se libertar
dessa subordinação o jovem Manuel Maria não a iria de certo desperdiçar!
Os
quatro anos (de 1916 a 1920) em que esteve ligado à “companhia de elecricidade”
foram de certo a melhor “academia” por lhe terem proporcionado a aquisição de
conhecimentos profundos de engenharia electro-mecânica tanto teóricos como
práticos graças aos engenheiros estrangeiros que lhe facultaram uma preparação
técnica que dificilmente poderia obter numa escola de engenharia que, acrescente-se
não existia na altura em Moçambique.
Por
aqueles anos surge uma conjuntura nova que lhe desperta a sua curiosidade:
- A
utilização do automóvel começa a vulgarizar-se e porque se tratava de uma
novidade técnica, aproveita a oportunidade que lhe surge com a abertura de um
concurso para um lugar de mecânico no parque automóvel militar de Lourenço
Marques em cujas oficinas se reparavam e recuperavam as viaturas-auto para
posterior venda ao público.
A
saída da companhia de elecricidade foi feita de acordo com os dirigentes da
empresa que conheciam bem a sua vontade de aprender e sabiam que era capaz de
se dedicar com tenacidade à mecânica automóvel.
Seis
meses depois, porque as viaturas do parque tivessem sido completamente
recuperadas, Manuel Maria recebeu uma guia de marcha que o transferia para os
serviços de elecricidade do porto de Lourenço Marques, o que não aceitou.
A sua
vida iria de novo mudar. Após uma passagem pelo porto da Ilha de Moçambique
onde contactou com os mais diferentes tipos de motores marítimos que equipavam
as embarcações desde as mais pequenas vulgarmente conhecidas por “gasolinas” até aos rebocadores de alto
mar com os seus motores a vapor ou a gasóleo, foi atingido por uma disenteria
amibiana que o deixou bastante debilitado após um tratamento prolongado.
Decide
então aceitar o convite de um amigo proprietário de uma empresa de carreira
automóvel de transporte de passageiros sediada no Chai-Chai, uma pequena
povoação localizada a cerca de duzentos quilômetros a Norte de Lourenço Marques
nas margens do rio Limpopo que o traria para mais próximo de Inhambane onde
vivia agora a sua família,
Depois
de umas breves incursões no comércio de automóveis monta uma oficina de
reparação de motores com representação para venda de automóveis das marcas
“Fiat” e “Chrysler”, tornando-se um exímio mecânico a ponto de abastados
comerciantes da cidade de Lourenço Marques, possuidores de potentes automóveis
americanos, desprezarem a distância que os separava do Chai-Chai na certeza de
uma excepcional manutenção!
Entretanto
a central electrica que abastecia a vila do Chai–Chai não conseguia a
normalização do fornecimento elétrico não obstante os esforços do técnico
eletricista que não conseguia resolver a anomalia que, como Manuel Maria
previra, resultava do mau funcionamento dos geradores.
A
Câmara do Chai-Chai põe a concurso o lugar de mecânico chefe dos serviços
electricos, que virá a ser ocupado por Manuel Maria Rocha, um nome que passa a
ser conhecido e considerado no domínio dos motores de combustão interna como os
que equipavam a maioria das máquinas.
Foi
por isso que surgiu uma ligação de forte amizade com um grande entusiasta pela
aviação civil, modalidade que despontava então de modo incipiente em Moçambique,
o piloto civil Torre do Valle.
E
quando este decide realizar um "raide aéreo" com princípio no Chai-Chai
em Moçambique até Alverca em Portugal,
solicitou aquele seu amigo a ajuda e todo seu saber para a alteração do
motor do seu Puss-Moth que lhe permitiu efectuar com êxito tão louca quanto
invulgar aventura relatada na minha 20ª MEMÓRIA PARA UM BUSH PILOT.
A
ligação entre estes dois amigos continuou após o regresso de Torre do Valle e
culminou na concretização de um projecto que vinham há muito tempo idealizando
na sequência de uma conversa que Manuel Maria tivera com o Director dos Portos
e Caminhos de Ferro de Moçambique, o engenheiro Pinto Teixeira: a formação de
uma empresa de aviação.
Corria
o ano de 1933 quando nasceu a primeira companhia de aviação comercial de
capital nacional em todo o espaço português, a AERO COLONIAL LDA., uma
sociedade formada por Armando de Vilhena da Torre do Valle, Manuel Maria Rocha
e Alfredo Santos Gil, cuja sede se instala num modesto hangar onde funcionava
já desde 1932, uma escola de pilotagem que chegaria a ser responsável pelo
licenciamento de dezenas de pilotos que percorrem os céus da África imensa incluindo Manuel Maria agora já casado.
Recuemos
entretanto uns anos antes, ao ano de 1928, numa manhã quando um conhecido piloto
sul-africano, o célebre major Allister Mackintosh Miller, voando sobre as águas
tranquilas da Baía do Espírito Santo que refletem vaidosas as areias avermelhadas
da cidade de Lourenço Marques, num avião DeHavilland DH.60X Cirrus Moth, durante
umas manobras acrobáticas, é surpreendido por uma falha de motor que, dada a
baixa altura a que voava, só lhe permitiu amarar de emergência junto a um barco
que saía do porto, numa manobra que embora não provocando quaisquer danos
físicos ao piloto, deixou o pequeno avião reduzido a um montão de tubos retorcidos
envolvidos pelas telas da fuselagem completamente rasgadas.
Os
restos da aeronave retirados da baía onde estiveram mergulhados na água salgada
durante vários horas não foram reclamados pelo seu proprietário, porque os
prejuízos não justificavam a despesa com a sua recuperação, o que veio a
provocar uma estranha quanto complicada situação: do ponto de vista legal a
aeronave de matrícula estrangeira estava de visita e não poderia ser importada
já que não exibia a necessária licença de importação para a sua permanência em
território português.
Foram
por isso depositados num quintal junto do armazém da alfândega de Lourenço Marques
sem qualquer protecção contra as intempéries durante o prazo legal para
reclamação cumprindo a legislação vigente, findo o qual foram vendidos em hasta
pública pelo preço de três mil escudos.
Este
valor foi arrematado pelo único interessado, Manuel Rocha, representado no
leilão pelo seu amigo Torre do Valle. Os restos do Cirrus Moth foram depois
transportados gratuitamente de camião, numa distância de 200 quilómetros, até ao
hangar do aeroclube de Moçambique no Chai-Chai, que viria a ser o ninho onde
nasceram os pioneiros da aviação civil moçambicana.
Manuel
Maria Rocha decide reconstruir o avião para o que pede a Torre do Valle que lhe
traga da fábrica da DE HAVILLAND numas das suas frequentes viagens a
Johannesburg na África do Sul, livros técnicos sobre engenharia aeronáutica e
pilotagem, em particular os planos necessários aos trabalhos de reconstrução.
Note-se que o domínio da língua inglesa bem como os seus conhecimentos
aeronáuticos eram ainda insipientes.
Munido
de toda a informação que Torre do Valle lhe trouxera, lançou-se na difícil
tarefa de reconstruir a aeronave que se prolongou por dezoito meses, tempo que
poderia ter sido de apena seis se dispusesse de dinheiro suficiente para
comprar os diferentes materiais necessários. Para a reconstrução da sua
aeronave contou ainda com a preciosa ajuda da mulher de um sócio do aeroclube
que o ajudou nos trabalhos de entelagem, que envolveu a estrutura tubular na
modelação final da fuselagem.
Foi este
o terceiro avião registado na colónia de Moçambique que ostentou inicialmente a
matrícula portuguesa C-PMAC e posteriormente a Moçambicana CR-MAC.
Baptizou-o
com o nome de Chai-Chai a terra que viria a ser o ninho onde nasceram os
pioneiros da aviação civil moçambicana.
É nesse
avião recuperado pela sua desmedida mas não menos perseverante curiosidade que
o acompanhava desde a infância, que completa em 1931 o treino de voo que lhe proporcionou
a obtenção do seu certificado de piloto de aviões (FAI).
E,
quando apresenta a sua aeronave na fábrica da DE HAVILAND em Johannesburg para
um rigoroso exame executado pelos engenheiros da fábrica, a apreciação do seu
trabalho, não poderia ter sido mais convincente ao ser-lhe passado o
certificado de navegabilidade com a observação dos responsáveis da inspecção “em como não se distinguia qualquer diferença
tanto na célula como no motor entre ela e outra que tivesse saído nesse momento
da fábrica”!
Manuel
Maria recorda que durante aquela visita solicitara ao director da DE HAVILLAND
OF SOUTH AFRICA COMPANY que lhe indicasse o que deveria fazer par obter o curso
de engenharia aeronáutica em Inglaterra.
- Pelo que conheço pessoalmente de si; pelas provas já dadas
como piloto, entendo recomendar-lhe que seguisse a carreira de piloto de linhas
aéreas, até por que, além de um futuro mais “arejado” é de certo uma carreira
mais rendosa!
O
jovem ouviu com muita atenção aquele sábio conselho e em boa ora o abraçou.
No
entanto a Aero Colonial que com tanto carinho havia fundado, em sociedade com os
seus amigos Torre do Valle e Santos Gil nos inícios de1933, e que contava com
três aeronaves, o CR-MAC o CIRRUS MOTH reconstruído por Manuel Rocha, o CR-MAG
um DH.80A PUSS MOTH, ambos de 2 lugares e o CR-MAH um biplano WACO UEC de 4
lugares da construtora americana com o mesmo nome, acabou por encerrar três
anos depois.
De facto
a Aero Colonial tinha como principais fontes de receita, os voos de fretamento que
desde a sua fundação desenvolve para todo o território de Moçambique, da África
do Sul e da Rodésia do Sul e a escola de pilotagem que chegou a contar com algumas
dezenas de alunos.
Entretanto
as carreiras de voos regulares que asseguravam uma ligação ao longo da costa entre
as cidades de Lourenço Marques e o Lumbo com escalas em Vila João Belo, Inhambane,
Beira Chinde, Quelimane Pebane e Angoche mantinham-se deficitárias carecendo do
apoio das autoridades da colónia como por exemplo a concessão do transporte do
correio oficial insistentemente reclamado e que continuava a ser anacronicamente
enviado por via marítima ou via terrestre.
Esta
teimosia governamental contribuiu para acelerar aquela sua falência.
Conta-se
a propósito que quando Torre do Valle dirigindo-se ao seu amigo responsável
pelo governo-geral da colónia, lhe pediu o seu empenho para a necessária
autorização do transporte das malas de correio oficial nos aviões da
Aero-Colonial lhe terá respondido:
- “Armando, sabes que sou teu amigo de há
muitos anos. Vou por isso dizer-te qual a razão porque não autorizo a concessão
do transporte das malas do correio. É que não acredito em aviões porque os
considero perigosos. Se ao menos fosse possível atrelar-lhes algumas parelhas
de cavalos, então talvez acreditasse. Mas como isso não é possível, não contes
com a minha anuência”!.
Tempos
depois desta resposta, (“coisas do arco
da velha”!), já depois de ter sido suspensa a exploração de todas as linhas
regulares da Aero Colonial (ficando disponíveis apenas os fretamentos aéreos e
a escola de pilotagem) e ainda antes da extinção da empresa, o Governador-geral
viu-se confrontado com uma situação deveras embaraçosa: - dispunha de três dias
para fazer chegar às diferentes circunscrições da colónia a legislação recebida
num correio atrasado proveniente do governo central!
Transportá-la
de barco levaria pelo menos uns trinta dias! Restava uma solução: utilizar os
aviões da Aero Colonial.
E
antes de terminados os três dias previstos, chegaram às autoridades das várias
circunscrições administrativas os exemplares da referida legislação entregues quer
directamente nos locais onde existiam pistas ou aeródromos, quer lançadas em
embalagens reforçadas dos aviões voando a baixa altitude.
Entretanto
a amizade entre estes dois companheiros havia sido bruscamente interrompida no
dia no dia 16 de Setembro de 1937, quando Torre do Valle, que além de piloto
era também um intrépido caçador, foi colhido mortalmente numa carga de um
elefante solitário que ele havia ferido durante uma caçada com a finalidade de defender as
culturas indígenas das devastações provocadas por aqueles animais que, na época
das secas, se deslocavam mais para Sul à procura de alimentos que escasseavam
no seu território habitual.
Aproveitando
a experiência de Manuel Maria Rocha, o então director dos Caminhos de Ferro de
Moçambique, Francisco Pinto Teixeira, à semelhança do que já havia feito em
relação aos transportes terrestres com a Divisão de Camionagem, convidou-o agora
para a criação de uma Divisão de Exploração dos Transportes Aéreos designada
pela sigla DETA.
A nova
companhia de aviação, a segunda companhia aérea formada na colónia de Moçambique
foi criada pelo Diploma Legislativo nº 521 publicado no Boletim Oficial nº 34 –
1ª série da colónia de Moçambique a 26 de Agosto de 1936.
De
certo que a experiência dos serviços prestados ao público nas integrantes
organizativas e operacionais da Aero Colonial havia de se revelar muito proveitosa
para a futura DETA.
A
criação de infraestruturas particularmente de serviços auxiliares de pessoal de
operações e de serviços de manutenção, a divulgação de voos de vulgarização junto
das populações com a finalidade de promover a confiança dos futuros
utilizadores, representavam de certo uma mais valia aditada sem qualquer despesa
para a DETA.
A
experiência de voo de Manuel Maria Rocha havia também de se revelar muito
proveitosa para o planeamento das rotas que viriam a ser operadas pela DETA.
Com os
trabalhos de organização da futura empresa surgiu a necessidade de elaborar um
projecto do Regulamento de Navegação Aérea já que o existente, por ser muito
antiquado não respondia às necessidades dos novos serviços aéreos da colónia.
Esta
situação será solucionada com a chegada de um Oficial Aviador designado para o
cargo de “Secretário do Conselho da Aeronáutica ” o capitão tirocinado Carlos
Marques de Magalhães que implementa na Colónia o Regulamento de Navegação Aérea
aprovado pelo Conselho Nacional do Ar pelo Decreto 20062 publicado em 13 de
Junho de 1930 na sequência do que é atribuída a primeira licença de piloto de transporte
público (passageiros, correio e mercadorias) a Manuel Maria (da) Rocha, o
primeiro piloto da DETA.
O
Comandante Rocha, como agora o passarei a designar, inaugura ao serviço da DETA
a carreira aérea regular entre Lourenço Marques e Johannesburg a 22 de Dezembro
de 1937, descolando do campo militar da Carreira do Tiro e aterrando no
aeródromo de Germinston que servia à época aquela cidade sul-africana.
A sua notável
ambição pelo aperfeiçoamento do conhecimento exigido pela profissão que
abraçara, não se satisfazia com o saber alcançado pela sua experiência de voo conseguida
durante os voos da Aero Colonial. Ansiava consolidar esses ensinamentos com
conhecimentos teóricos que só uma escola superior de aviação lhe poderia proporcionar.
Solicita pois ao Director dos Serviços, o engenheiro Pinto Teixeira, autorização
para frequentar em 1938 a Faculdade de Engenharia Aeronáutica (Air Service
Training School) em Inglaterra.
Esta
escola de formação aeronáutica fundada em 1931 por John Davenport Siddeley em
Hamble no Hampshire, acreditada pelo Ministério da Ar Britânico, foi
responsável por habilitar pilotos profissionais das companhias aéreas de mais
de 100 países.
O
Comandante Rocha excedendo todas as expectativas classificou-se entre os mais
destacados, obtendo o “CERTIFICATE OF COMPETENCY AND LICENCE TO FLY PRIVATE
FLYING MACHINES” número 15392 emitido pelo Ministério do Ar da Grã-Bretanha e
Irlanda do Norte em 29 de Agosto de 1938, que o habilitava a pilotar como
comandante, qualquer aeronave em linhas aéreas internacionais incluindo
hidroaviões de longo curso conhecidos por “flying boats”.
O seu notável
desempenho como aluno levaram a escola a convidá-lo a juntar-se aos seus
quadros de instrutores já que aliava ao seu conhecimento da língua inglesa, o
domínio das de raízes românicas utilizadas por muitos dos alunos oriundos da
América Latina.
Cativado
com tal convite teve contudo de o recusar pelos vínculos que o prendiam ao
projecto de organização e
criação da DETA pelo que regressa a Lourenço Marques onde é então promovido
a Comandante de Aeronave exercendo o cargo de Piloto Chefe até ao ano de 1944.
Por
alturas de 1938 a DETA possuía já uma frota constituída de três aviões Junkers
JU.52/3m de 14 passageiros a que se juntam ainda em 1938 três aviões
DH.89A Dragon Rapide destinados às carreiras internas,
sobretudo das ligações ao norte da Colónia. Finalmente em meados de 1940 chegam
três aeronaves 14-H2 da Lockheed, conhecidos por Super Electra com uma lotação
de 12 passageiros e com uma velocidade de cruzeiro de 300 km/hora a 10.000 pés,
o que permitia uma agilização das carreiras aumentando as frequências.
Entretanto
iam chegando a Lourenço Marques alguns dos técnicos que haviam frequentado a
escola de pilotagem de Joanesburgo onde obtiveram as respectivas licenças de
voo nomeadamente de pilotos, radiotelegrafistas e mecânicos.
Já nomeado
piloto chefe, o Comandante Rocha teve conhecimento de que um daqueles jovens
pilotos recentemente licenciados fora convocado pelo superintendente de
operações que, na presença do chefe da manutenção e com a porta do gabinete
fechada o repreendeu com recurso à aplicação de duas bofetadas.
A
razão de tão censurável conduta justificava-se, segundo aqueles dois chefes, como reacção ao comportamento profissional
censurável daquele piloto com a elaboração insistentes e “inexatas” reclamações
sobre o anormal comportamento dos motores dos aviões “Rapide” que, segundo ele,
punham em perigo a segurança da aeronave, passageiros e tripulantes!
Esta
acção daqueles dois altos funcionários provocou uma reacção algo tempestuosa do
piloto chefe que afirmou não poder concordar
com ela e que caso se repetisse teriam de se haver com a sua total oposição
ainda que violenta!
Durante
o tempo em que esteve ligado à DETA, o Comandante Rocha pode vangloriar-se de que,
à parte pequenos incidentes técnicos, os voos realizados pela companhia podiam
ser considerados “de muito satisfatórios”.
Com
uma frota razoavelmente equipada e contando já com uma série de pilotos
oriundos da escola de aviação da própria empresa apoiada na experiência que lhe
proporcionava a escola do Aero clube de Moçambique, o então director dos Portos
e Caminhos de Ferro de Moçambique, conhecendo uma antiga ambição do Comandante
Rocha de estabelecer uma carreira ligando Lourenço Marques a Lisboa pediu-lhe
que elaborasse o estudo de um possível itinerário considerando o sobrevoo dos
territórios africanos com quem Portugal mantinha relações normais evitando
contudo qualquer zona de guerra activa.
Nesta
conformidade foi esboçado um itinerário que compreendia as seguintes escalas:
Salisbury (Rodésia do Sul actual Zimbabwe), Livingston (Rodésia do Norte,
actual Zâmbia), Vila Luso, Luanda, Libreville (Gabão), Lagos (Nigéria), Gão
(Mali), Auolef (Argélia) e Casa Blanca (Marrocos).
Com
base no itinerário produzido, é elaborada pelo Governo-geral da Colónia uma
proposta dirigida ao Governo Central que, segundo consta, mereceu uma lacónica
resposta: “As iniciativas de quaisquer
ligações aéreas ou outras, entre a Metrópole e as Colónias, são da exclusiva
competência do Governo Central”.
No
entanto, em consequência do agravamento do conflito que opunha as nações ditas
aliadas às nações do eixo Roma-Berlim e dada a posição de Portugal como país
neutral, foram suspensas as carreiras com destino aos países do Commonwealth,
África do Sul (Germinston) e Rodésia (Salisbury), o que restringiu a DETA à execução
das carreiras internas. Esta limitação vem impedir o projeto de ampliar a sua
experiência aos voos internacionais de longo curso.
Em
1944 o Comandante Rocha é nomeado para comandar um Lockheed 14 por indicação do
então Ministro do Ultramar Dr. Francisco José Vieira Machado, que o iria
transportar com a respectiva comitiva a uma visita oficial ao Congo Belga.
Durante
aquela visita foi interpelado pelo director geral da SABENA que lhe pergunta se
aceitaria preencher uma vaga de comandante de aeronave na linha que ligava
Leopoldeville (actual Kinshasa) ao Cairo, dado que possuía a seu respeito as
melhores informações referidas pelos comandantes e chefes de escala da
companhia aérea britânica BOAC, já que aquela linha seria então operada pela
SABENA mediante um contrato especial.
A
operação da SABENA incluía a área do Golfo da Guiné com escalas em Accra
(Gana), Lagos (Nigéria), Douala (Camarões), Libreville (Gabão) que iria
transportar o tráfego de passageiros, carga e mala de correio através do
território do antigo Congo Belga até ao Cairo.
Impunha-se
porém uma condição caso ele aceitasse o lugar a de obter uma autorização do
comando aliado das operações de guerra para poder sobrevoar os países
beligerantes e zonas de operação de guerra.
Chegados
a Luanda o Comandante Rocha expõe ao Ministro a proposta que acabara de receber
e que concorria com o desencanto profissional que experimentava motivado pela
estagnação do meio aeronáutico de Moçambique que a guerra impusera, pedindo-lhe
que intercedesse junto da Direcção do Caminhos de Ferro para a concessão
antecipada da sua exoneração do cargo que exercia na DETA.
Naturalmente
o Comandante Rocha não se referiu ao arrefecimento das suas cordiais relações
que mantivera com o director da DETA até ao momento em que se verificou o
incidente que envolveu o chefe de operações e o chefe da manutenção com o jovem
piloto e da sua reacção violenta que foi por eles aproveitada para corromperem
a sua excelente e antiga ligação ao Engenheiro Pinto Teixeira.
A
resposta do Ministro surpreende-o:
- Compreendo a sua situação e a sua ambição em ampliar a sua
experiência em novos voos.
Vou informá-lo com toda a confidencialidade que este caso
exige, de algo que estamos a preparar:
Pelo facto de neste momento as ligações entre Lisboa e o
Ultramar estarem sujeitas a imprevisíveis demoras e especificamente os perigos
que a guerra provoca no transporte marítimo, estamos a trabalhar para
conseguirmos implementar uma futura ligação aérea, uma “Linha Aérea Imperial” e
acrescento muito particularmente que estamos a contar consigo como elemento
indispensável a esse trabalho.
Sabendo
que na fase que então estava a aviação civil uma ligação Lisboa Lourenço
Marques era improvável pela situação de guerra que envolvia as nações da Europa
e as suas colónias africanas e que só seria viável com a utilização de novos
tipos de aeronaves o Comandante Rocha parte para uma nova etapa da sua vida
aeronáutica não sem antes se comprometer a disponibilizar
os seus préstimos quando o governo central assim entendesse.
Entretanto
porque existisse uma comunicação confidencial dirigida ao comando militar de
Moçambique proibindo a concessão de licença a qualquer trabalhador da DETA que
pretendesse viajar ao estrangeiro, a conselho de um amigo, o Comandante Rocha
requere a transferência do seu dossier militar para Angola onde não vigorava
aquela referida restrição para ausência para o estrangeiro.
Já na
SABENA onde fora admitido para o cargo de Comandante de Aeronave é colocado no
terceiro lugar na lista da hierarquia das operações, logo a seguir ao chefe de
pilotos dos voos internos e do chefe dos pilotos de longo curso, sendo-lhe
atribuída uma aeronave Lockheed Lodestar semelhante à que ele tão bem conhecia
de Moçambique.
E de
novo já se sente “nas nuvens” ao sobrevoar a enorme região da densa floresta
tropical em toda a sua extensão, desde a cidade de Lagos na Nigéria até Antebe
ou Kisumu nas margens do Lago Victória no território do Sudão.
As
condições meteorológicas em que operava na Golfo e no Congo, eram semelhantes
aquelas que encontrava em Moçambique onde na época das monções se desenvolviam
gigantescas formações de tormentosas nuvens verticais, os cúmulos-nimbos carregadas
de colossais quantidades de água que se precipitavam em dilúvios sobre os
aviões que se aventuravam voar nas proximidades, encharcando a rede electrica dos
motores que se ressentiam em enormes perdas de eficiência.
O
infindável sobrevoo da floresta tropical terminava ao chegar ao enorme Lago
Victória e só então a paisagem muda ao deixar de Malakal no Sudão. Surge agora o
rio Nilo serpenteando por entre as areias douradas do deserto que se elevam por
vezes furiosas, arrastadas por fortes ventos em autênticas tempestades estendendo-se
a perder de vista a que os anglo saxões designam por “sand storms”.
Sempre
que possível evitavam aqueles temporais que reduziam a visibilidade a zero já
que voando a cerca de nove mil pés, cerca de dois mil e setecentos metros, o
avião era completamente envolvido por uma nuvem de areia que subindo até aos
dezoito mil pés constituía um verdadeiro perigo para os motores que em vez de
aspirarem ar puro para os cilindros aspiravam areia e pó que lhes causavam
desgastes anormais nos respectivos êmbolos.
Esta
linha da BOAC, operada em regime de contracto especial pela SABENA, foi
implementada após a entrada da Itália, em 10 de Junho de 1940, na Segunda
Guerra Mundial, como solução de emergência à situação resultante. Na verdade
com o alinhamento da Espanha ao eixo militar Berlim-Roma tornou-se impossível o
trânsito seguro das aeronaves entre o Reino Unido e a cidade do Cairo no Egipto
utilizando o corredor aéreo do Mar Mediterrâneo não obstante o consentimento do
governo neutral de Lisboa da utilização do aeroporto da Portela por aviões civis
britânicos.
A
Grã-Bretanha decide reactivar a antiga rota da BOAC conhecida por “Horse Shoe
Route” (rota em ferradura) que ligava os terminais de Auckland na Nova Zelândia
e Durban na África do Sul através do “hub” da cidade do Cairo.
O ramo
africano da rota designado por “horse shoe”, tinha início em Durban com escalas
por Lourenço Marques, Beira e Lumbo em Moçambique, Lindi, Dar es Salam e
Mombaça no Quénia, Kisumu, Juba Malakal no Sudão, Wadi Halfa, Luxor e terminava
na cidade do Cairo, no Egipto.
Aquela
linha operada pela SABENA tinha uma duração de 11 dias e destinava-se ao transporte
do tráfego de passageiros e correio originados no Reino Unido até às cidades do
Golfo da Guiné, Accra e Takhoradi no Gana e Lagos na Nigéria pela rota aérea da
África Ocidental utilizando os “barcos voadores” da fábrica britânica “Short”,
os célebres "Short Sunderland".
Àquele
tráfego juntavam-se os passageiros chegados em aviões militares provenientes dos
Estados Unidos da América.
O voo prosseguia depois de Brazaville, via
Stanleyvile (actual Kisangani) até Kisumu no Lago Victória onde esta linha se incorporava
na rota “horse shoe” com destino ao Cairo.
Terminada
esta etapa as tripulações hospedavam-se no Hotel Heliopolis que, não obstante o
rigoroso “blackout” observado em todas as zonas vizinhas do Cairo e de
Alexandria, exibia ainda os sinais da feroz luta que o 8º exército britânico
sob o comando do general Montgomery travara recentemente em El Alemain com as
tropas da “Afrika Korps” comandadas pelo general alemão Erwin Rommel conhecido
pela “raposa do deserto”.
Durante
o período que voou na SABENA, ainda no início da sua adesão à companhia, o Comandante
Rocha foi confrontado com duas situações de sabotagem já que a entrada de um
português para aquela linha pode ter desagradado a alguns colegas de trabalho.
A
primeira consistiu em avariar o sistema de rádio e do gónio manual que permitia
determinar a posição da aeronave relativamente ao aeródromo.
Noutra
ocasião após uma pernoita em Libenge no regresso do Cairo, foram subtraídas
todas as válvulas do emissor-receptor de bordo.
Só a experiência
de navegação do comandante Rocha na primeira situação e a previdência do
mecânico do voo que transportava no “kit” de sobressalentes um número
suficiente de válvulas que permitiram a reutilização do emissor-receptor
sabotado.
É
também digno de assinalar um incidente ocorrido em fins de 1944, quando fazendo
parte da tripulação de um avião da SABENA e pretendendo desembarcar em Lisboa
pela primeira vez aproveitando a escala técnica do voo com destino a Londres,
pediu autorização antecipadamente para o seu desembarque já que por se tratar
de escala técnica o avião não poderia embarcar ou desembarcar passageiros.
Surpreendentemente
surgiu uma oposição exercida por alguns indivíduos que manifestaram fortes
obstáculos à autorização solicitada junto do Secretariado da Aeronáutica Civil
cujo director era então o Tenente Coronel Humberto Delgado que face daquelas
pressões exercidas sobre ele avisando-o “que se tratava de pessoa perigosa e de
carácter muito conflituoso” e não querendo arcar com a responsabilidade da
decisão de um caso de contornos muito intrigantes, decide submeter o pedido ao então
Presidente do Concelho de Ministros de quem dependia directamente, o Doutor
Oliveira Salazar, que promoveu o seguinte despacho:
- “Tratando-se de um português nascido no Ultramar,
não vejo razão para lhe ser negado o desembarque na mãe Pátria”.
Quando
em Lisboa e a conselho do seu amigo o Engenheiro Manuel Bramão se dirige ao
Director do Secretariado da Aeronáutica Civil para agradecer o interesse que dedicara
ao seu pedido e ao fim de uma interessante conversa, o Tenente Coronal Humberto
Delgado disse a certa altura:
- Há bocado, quando recebi o seu cartão hesitei sobre se o
deveria ou não receber, pois, por tudo o que me informaram esperava ter de
enfrentar uma pessoa altamente perigosa, conflituosa e intratável.
Porém, depois de estar a conversar consigo há mais de meia
hora, já estou convencido de que o Senhor não é nada daquilo que me quiseram
convencer e que afinal, é uma pessoa de natureza completamente oposta, reveladora
de um grande espírito de concórdia”.
Ainda
ao serviço da SABENA o Comandante Rocha foi destacado para transportar de
Luanda para Lisboa um grupo de colonos portugueses que foram passar as festas
natalícias em Portugal nos finais de 1944, efetuando a primeira viagem de
transporte de passageiros entre Luanda, Lisboa e regresso
Entretanto
a guerra na Europa terminara e o Comandante Rocha completa em Junho de 1945 os
dois anos necessários a gozar os seis meses de licença graciosa como prática
nas colónias belgas e resolve passa-los em Lisboa.
O seu
desempenho ao serviço da companhia belga fora entretanto verdadeiramente
reconhecido pelas chefias da SABENA que lhe propuseram o comando dos novos
aviões Skymaster já encomendados para operarem no Atlântico Norte na Linha
Bruxelas-Nova York, após o seu regresso de férias.
Com
estas excelentes perspectivas profissionais deixa Brazaville e chega finalmente
a Lisboa. Aluga um modesto apartamento num conjunto residencial relativamente
novo urbanizado entre os inícios dos anos trinta e os meados dos anos quarenta
do século XX, um lugar sossegado conhecido por “Bairro das Colónias” onde inicia
o tão esperado descanso de seis meses recuperando do stress acumulado durante
aqueles dois anos intensamente vividos em África.
Antes
de terminar a sua licença, recebe uma estranha convocatória do capitão António
Quintino da Costa adjunto do director do recém criado Secretariado da Aeronáutica
Civil que o Comandante Rocha não conhece, com a finalidade de tratar de um “assunto
ligado à actividade aeronáutica”.
E é
com espanto que escuta o convite proposto por aquele director:
- “Este Secretariado está encarregado de organizar as
carreiras aéreas no País e como deve saber, existe uma dificuldade em recrutar
pilotos com a necessária experiência de voo.
Tendo chegado ao nosso conhecimento que o Senhor Comandante
Rocha se encontra a passar férias em Lisboa, fui incumbido pelo senhor Tenente
Coronel Humberto Delgado director do Secretariado da Aeronáutica Civil de saber
se estaria disposto a dar-nos a sua colaboração neste projecto nacional,
aceitando um cargo específico naquele Secretariado onde participará na
organização e montagem das “Linhas Aéreas Nacionais” em especial a “nova Linha
Aérea Imperial”.
E
acrescentava antecipando as prováveis objecções que pudesse invocar ao não
acolhimento da proposta:
- Temos plena consciência de que não lhe podemos oferecer as
condições que possui na SABENA. No entanto elaboramos uma proposta que está de
momento no gabinete do Presidente do Conselho de Ministros, o senhor doutor
Oliveira Salazar para ser submetido à sua apreciação e eventual aprovação.
Como português e porque está certamente ciente da grandeza
deste empreendimento nacional, é nossa convicção que não deixará de dar a sua
preciosa e imprescindível colaboração.
A
remuneração que lhe é então oferecida poderia ser considerada aceitável tendo
em conta os níveis remuneratórios então praticados para o funcionários superiores
do Estado, mas não atingem porém um terço do que a SABENA lhe garantia,
acrescidas de regalias tais como casa de habitação adequada à categoria do
funcionário, subsídios de família, assistência médica e hospitalização
totalmente gratuitos e seis meses de licença graciosa de dois em dois anos com
viagens aéreas para si e sua família.
Manuel
Maria Rocha pensou seriamente sobre a decisão a tomar: recusar ou aceitar a proposta do SAC?
O
facto de, como natural da colónia de Moçambique, ser considerado português e de
ter ainda assumido um compromisso para com o então Ministro das Colónias, (acontecimento
que o SAC então ainda desconhecia), levaram-no à decisão de aceitar mais este
desafio prosseguindo um sonho que iniciara quando fundou com Torre do Valle a
Aero Colonial e que era o de dotar todo o país de uma linha aérea fiável que
ligasse as capitais das colónias africanas com Lisboa: “optei por aceitar, dando todo o melhor do meu saber para servir Portugal abandonando as
vantagens materiais que desfrutava na SABENA“.
Aqui
vos digo agora, que num futuro não muito distante o Comandante Rocha iria confirmar
esta decisão como a mais errada e prejudicial das decisões da sua vida quando
se viu confrontado com as manifestações de incompreensão e egoísmo de alguns futuros
colegas de voo nos TAP.
Assim
que foi conhecida a sua próxima admissão no Secretariado de Aeronáutica Civil surge
publicada no “Diário Popular” uma carta aberta, de autor anónimo, dirigida ao
Comandante Rocha visando desacreditar a imagem de um homem que, com os seus
conhecimentos aeronáuticos, havia prestado um inestimável serviço à aviação
nacional e internacional.
O
Comandante Rocha por insistência dos muitos amigos que, depois de leram as
palavras daquele pasquim cujo autor ou autores se esconderam num cobarde
anonimato, lhe pediram uma resposta adequada, em particular ao comentário
produzido que referia que, “se desejava
ingressar como piloto que o fizesse entrando na “bicha” como os outros”.
Refutando
aquela insinuação o Comandante Rocha observou que, “quando concorreu ao lugar (para o qual havia sido de resto convidado),
posicionou-se devidamente na “bicha” dos comandantes de linha aérea que tinham
mais de oito mil horas de voo, onde não encontrou ninguém com essas
habilitações, razão porque ficara em primeiro lugar”.
É que
quem escrevera aquele panfleto não havia sido certamente informado do currículo
daquele comandante que já passara por uma academia aeronáutica de reconhecida
categoria e acreditada pelo Ministério da Ar Britânico e que fora então responsável
por habilitar pilotos profissionais das companhias aéreas de mais de 100
países.
De
certo também não sabia ou não fora informado que o Comandante Rocha se havia
classificado entre os mais destacados alunos daquela academia, obtendo uma
licença emitida pelo Ministério do Ar da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte em 29
de Agosto de 1938, que o habilitava a pilotar como comandante, qualquer
aeronave em linhas aéreas internacionais incluindo hidroaviões de longo curso
conhecidos por “flying boats”.
Não foram
finalmente convenientemente informados que o Comandante Rocha formara em
Moçambique uma empresa de aviação nos anos 30, a AERO COLONIAL e depois uma
outra, a DETA ambas em Moçambique e que voara também como comandante de aeronave
de uma outra companhia estrangeira, a SABENA!
A II
Guerra Mundial proporcionou um rápido desenvolvimento tecnológico da aviação
permitindo que terminado aquele conflito existisse um número excedente de
aeronaves sobretudo os DC-3 que foram adaptados com vista à sua utilização pela
aviação de transporte civil passando a equipar a maioria das companhias aéreas
que surgiam das cinzas do conflito mundial.
Na
sequência das inovações que se iam verificando no ramo da aviação civil, é
criado a 22 de Setembro de 1944 o Secretariado da Aeronáutica Civil (SAC) na
dependência directa da Presidência do Conselho presidida pelo Dr. Oliveira
Salazar e chefiado pelo então Tenente Coronel Piloto Aviador Humberto Delgado
que consegue, mercê de um extraordinário poder de persuasão, convencer Salazar à
criação dos Transportes Aéreos Portugueses integrados no SAC. Tão forte foi o
empenhamento que viu materializado o seu sonho pelo Despacho de 14 de Março de
1945.
Para
conhecermos a origem dos meios humanos que vieram preencher o quadro inicial técnico
dos TAP, debrucemo-nos por breves momentos sobre a criação da aviação militar
portuguesa
Podemos
considerar o princípio da aviação militar com a fundação do Aero Clube de
Portugal por um grupo de oficiais do exército, em 1909, com o objectivo de promover
o desenvolvimento da Aeronáutica em Portugal bem como o seu uso militar.
Em 1911, no âmbito da organização
do Exército Português é criada a Companhia de Aerosteiros que tinha por missão
assegurar as comunicações militares pelo meio da aerostação, aviação e pombos
correios.
Em 1914 é criado no Exército
português o Serviço Aeronáutico Militar e a escola Militar Aeronáutica (EMA),
instalada em Vila Nova da Rainha, junto à Companhia de Aerosteiros.
Em 1917 é criado na Marinha o
Serviço e Escola de Aviação da Armada, bem como a primeira base aeronaval o
Centro de Aviação Marítima do Bom Sucesso, em Lisboa.
Somente, em 1952 pela Lei nº 2055
de 27 de Maio, a Aeronáutica Militar é organizada como ramo independente das
Forças Armadas comandado pelo chefe do Estado-Maior das Forças Aéreas e
integrando as anteriores Aeronáutica e Aviação Naval considerando-se como o
marco da criação da Força Aérea Portuguesa.
As
dificuldades encontradas inicialmente para prosseguir com o arranque da
companhia no capítulo do pessoal dada a escassez de quadros técnicos capazes de
lidar com a experiência da aviação comercial, não demoveram Humberto Delgado de
prosseguir a concretização do projecto já que, no que respeitava a material,
beneficiou da compra do material excedente de guerra, especialmente os
versáteis e robustos “Dakotas”.
Para
solucionar o seu problema humano, optou por seleccionar e convidar pilotos e
mecânicos originários dos quadros da aviação naval e da aviação militar.
Para
que estes indivíduos estivessem aptos a operarem numa linha aérea havia de lhes
proporcionar uma adequada formação profissional. Com esse objetivo foram constituídos
dois grupos para frequência de cursos de formação de Pilotos de Linha Aérea e enviados
para frequentarem os respectivos cursos na British Overseas Airways Corporation
(BOAC) em Inglaterra e para a IBERIA em Espanha, num verdadeiro esforço de
arranque dos futuros TAP.
Este conjunto de recém formados
pilotos de linha aérea formada nas escolas daquelas duas companhias europeias
constituía um grupo heterogéneo com duas filosofias de voo completamente
diferentes e cedo se começou a compor um ambiente de clara indefinição
resultante de uma mescla das diferentes patentes militares de oficiais do
quadro e oficiais milicianos, provenientes quer da aviação militar ou da
aviação naval, num confronto marcado pela disputa das futuras posições na
hierarquia dos TAP.
É neste contexto que chega à recém
formada companhia o Comandante Rocha, contratado pelo Secretariado da
Aeronáutica Civil.
O ambiente que então se vivia não
era nada acolhedor agravado ainda pelo conhecimento que os jovens pilotos só
então tiveram do projecto de contrato que os ligaria à TAP e que eles, na
euforia inicial dos convites para os cursos de formação, não haviam acautelado
e que lhes conferia afinal um salário igual ao que tinham nas forças armadas.
Sentindo-se logrados na sua boa fé
quando aceitaram frequentar os cursos sem um contrato previamente assinado
desencadeou-se um descontentamento nos jovens oficiais que os leva a propor em
conjunto uma reclamação ao director do SAC, numa conduta imprudente já que,
pelo Regulamento de Disciplina Militar, estavam impedidos de quaisquer
manifestações colectivas.
Acrescentam ainda àquela
reclamação, que tendo conhecimento da vinda de um piloto comandante estranho à
aviação militar, “não aceitariam de modo
algum receber ordens provindas de um civil desconhecido, de um qualquer
paraquedista caído dos céus”!
Ao que parece, os argumentos
invocados nesta última parte da reclamação não tiveram a concordância dos
pilotos provenientes da aviação naval.
Humberto Delgado no seu estilo
impulsivo convocou-os de imediato ao seu gabinete inteirando-se individualmente
das suas razões.
Com a capacidade que tinha em
criticar, era também capaz de reconhecer a justeza das reclamações, pelo que concordou
com as alterações das bases remuneratórias dos futuros contratos. Não aceitou
contudo qualquer modificação à hierarquia decidida para a implementação da
Linha Aérea Imperial, estabelecida em razão do contrato de 30 de Janeiro de
1946, aprovado por despacho de 31 desse mês que
convocou “Manuel Maria Rocha para prestar Serviço como Perito e Piloto de
Linhas Aéreas dos Transportes Aéreos Portugueses do Secretariado da Aeronáutica
Civil” e que foi assinado em 20 de Fevereiro de 1946 pelo Presidente do
Conselho o doutor António de Oliveira Salazar.
Em razão da sua decisão foram atribuídos
ao Comandante Rocha as seguintes funções:
Primeiro Adjunto do
Conselheiro Geral;
Primeiro Adjunto do Director
Técnico;
Chefe do Pessoal Navegante.
Os cargos de Conselheiro Geral e
Director Técnico eram desempenhados por um técnico aeronáutico inglês cedido ao
Secretariado da Aeronáutica Civil pelo Ministério do Ar Britânico).
Com a chegada dos primeiros
Dakotas adquiridos pelo Secretariado nos Estados Unidos iniciaram-se os voos de
adaptação dos jovens pilotos e do Comandante Rocha que destaca dois
colaboradores oriundos da aviação naval, os primeiros-tenentes Rui de Barros
Brito e Abel Rodrigues Mano que, “suprindo
a falta de experiência, com interesse, dedicação e lealdade, revelaram-se bons
colaboradores na execução da tarefa proposta para os TAP”.
Participaram por isso em quase
todas as viagens experimentais integrando as tripulações por ele selecionadas
ocupando alternadamente em cada viagem as funções de copiloto e de navegador
com a finalidade de os preparar para assumirem o comando nas futuras viagens da
“Linha Aérea Imperial”.
Foi a dedicação dos jovens tripulantes
que colaboraram nas viagens de adaptação ao Dakota percorrendo as rotas
africanas sobre o deserto e as restantes rotas europeias que permitiu que se
cumprisse a promessa anunciada por Humberto Delgado de que se iniciaria a
“Linha Aérea Imperial” em “princípios de
1947, ou talvez antes!”
Mas foi sobretudo a persistência
do trabalho didático do “Patriarca do
Dakota”, (como referiu o Comandante Silva Soares no seu livro “Histórias Com Asas” de que aqui transcrevemos
algumas passagens) que permitiu, através de um fluxo de informações obtidas em
cada viagem e passadas às diversas tripulações, o conhecimento da rota de
África “tão cheia de segredos e
surpresas”.
Como todos os pilotos dos TAP, o
Comandante Rocha voava pela primeira vez os recém chegados Dakotas. Só que já
começara a voar nas rotas de África em transportes aéreos comerciais desde 1934
na Aero Colonial, depois na DETA e finalmente na SABENA “tendo ingressado nos TAP mercê da sua longa experiência de voo
naquelas rotas; era um profissional que nessas mesmas experiências baseava a
solidez da sua actuação”.
E o Comandante Silva Soares
prossegue a sua opinião afirmando que
“voava em África como se ela fosse o seu quintal. Conhecia-lhe os cantos e
recantos, sabia dos seus segredos, dos seus caprichos. No “cockpit” do seu
Dakota, como um patriarca, dava lamirés aos pequenos Pilotos, que mesmo quando
já podiam ter barbas em aviação, andavam ainda de cueiros em África”.
A sua sabedoria de voo, podia-se
assegurar, procedia de um “saber de
experiência feito” fruto de uma capacidade de análise, de avaliação e
ponderação dos factores intervenientes de modo a enriquecer a sua bagagem
profissional. Era o saber de experiência feito. A experiência inteligentemente
absorvida e inteligentemente utilizada”.
Logo após a sua nomeação para
adjunto do director técnico e “chefe do pessoal navegante”, o Comandante Rocha,
com vista à escolha do itinerário para o voo inaugural da “Linha Aérea Imperial”,
desenvolve um plano que incluía uma série de voos experimentais sobre o deserto
do Sahara que ele percorrera por várias vezes nos aviões da SABENA. Estes voos
serviriam não só para organizar os serviços nas escalas dos percursos em que o
apoio de ajudas a navegação aérea e o suporte meteorológico da época eram
praticamente inexistentes, mas principalmente para
treinar e familiarizar as jovens tripulações para o voo em condições para as
quais, dada a sua pouca experiência, não possuíam qualquer prática nomeadamente
de procedimentos em linhas aéreas.
O primeiro voo de ensaio que ligou
as cidades de Lisboa, Luanda e Lourenço Marques iniciou-se no dia 24 de Março
de 1946 terminou com a chegada a Moçambique no dia 1 de Abril num total de 45
horas e 20 minutos voadas com uma interrupção na viagem de quatro dias em
Luanda.
A tripulação deste voo
experimental que ligou pela primeira a cidade de Lisboa com as cidades capitais
de Angola e Moçambique era assim constituída:
Comandante
do voo, o Comandante Rocha; 1ºs Pilotos Rui de Barros Brito e Abel Rodrigues
Mano, desempenhando alternadamente as funções de Copiloto e Navegador;
Radiotelegrafistas Fernando Zoio e Ribeiro Simões; Mecânicos Manuel Fonseca da
Silva e David Henrique Amaro Gonçalves; Meteorologista Dr. Alberto Leão Diniz e
Mecânico Chefe da BOAC J.H. Barnes. A bordo seguiu ainda o Major Humberto da
Cruz Delegado do Secretariado da Aeronáutica Civil.
Este primeiro voo, tal como os
outros três que em que se utilizaram diferentes escalas, teve como propósito
preparar e escolher o itinerário que melhor conviesse à anunciada “Linha Aérea
Imperial”, “nome pomposo escolhido na
época para designar a primeira linha aérea regular que ligaria o novo ao velho
continente, mais precisamente a capital do Império às suas Colónias Africanas
de então”.
Na verdade prosseguia o plano
delineado em que se praticavam frequentes e diversos briefings sobre as rotas, sobre
os procedimentos de utilização dos equipamentos de salvamento no mar, no
deserto e na selva.
Procurava-se sempre que possível, que
as tripulações já constituídas participassem nas viagens de treino com vista ao
reforço da coesão das relações entre os tripulantes para uma perfeita adaptação
ao trabalho de conjunto.
Durante estes voos de preparação, sugere
o Comandante Rocha ”que seria
de grande vantagem que os aviões fossem equipados com uma máquina fotográfica.
Sob o ponto de vista meteorológico poderiam colher-se múltiplos aspectos de
céus que muito interessam a navegação. Ficaria “claro que não se faria
da máquina uso clandestino e só seria utilizada quando não houvesse qualquer entrave
de ordem internacional”.
À medida que se completavam os voos
experimentais produziam-se uma quantidade de relatórios de viagens pela leitura
dos quais reconhecemos que o Comandante Rocha patenteia uma preocupação, uma
vontade de, com um certo orgulho, cumprir as tarefas programadas: ”Foi
mantido e cumprido o horário marcado para a realização da 1ª viagem
experimental”.
Contudo, não se preocupa apenas com
os aspectos técnicos da missão. É também a faceta humana do pessoal de voo e
dos possíveis desvios comportamentais como o caso de um dos tripulantes, um
radiotelegrafista operando já há algum tempo nestes voos de adaptação, que “por temperamento ou por crise nervosa
resultante do desastre com o avião Liberator, parece não voar à vontade”,
que conclui com a sugestão da sua suspensão temporária com vista a uma
desejável recuperação.
Atento à comodidade e simpatia para
com os passageiros, recomenda que ”o
lugar previsto de camareiro de bordo dos aviões, seja desempenhado antes por
uma rapariga convenientemente seleccionada e educada no seu mister aéreo. Além
de tudo há que atender ao conforto moral e confiança que é preciso oferecer a
qualquer das muitas senhoras passageiras que viajem sem qualquer pessoa de família
ou amiga”.
Outra dificuldade surgida foi com o vestuário
dos tripulantes nada recomendável às temperaturas elevadas que iriam encontrar
nas escalas e que levou o Comandante Rocha a comentar que “o fardamento azul” não era apropriado para utilização nesta
linha africana. E sugere que “é necessário cuidar dum outro mais leve
e que melhor se ajuste ao clima. E aproveita para criticar “a farda de
caqui que a tripulação levou” que “é de mau pano, grosso e fácil de
enxovalhar”.
“As meias, segundo alguns comentários feitos pareciam, e
julgo que são, meias para menina. Se não há meias próprias no mercado nacional,
poderão ser adquiridas em Accra, onde há de boa cor, de boa malha e muito mais baratas”.
Quanto ao calçado, continua, devem “ser
distribuídos botins semelhantes ao que usa o pessoal da BOAC (British Overseas
Airways Corporation) nas viagens aéreas por terras de África. São de grande
conveniência por causa dos mosquitos”.
Não deixa
também de se referir ao equipamento utilizado pelos tripulantes comentando que“ os
óculos que foram distribuídos à tripulação não servem. São de ordinária
qualidade e devem ser substituídos. Por poucos elementos e por poucas vezes
puderam ser utilizados”.
No campo
da prevenção sanitária,
(medicamentos a bordo), o Comandante Rocha aconselha a companhia a organizar “uma pequena farmácia com o que lhe
parecer de melhor aplicação para o caso das doenças mais vulgares nas regiões
que se atravessam. Em Luanda por exemplo tive que mandar comprar Lactil para
quase todos os elementos da tripulação que se sentiram mal dispostos com qualquer
enfermidade intestinal. Em Freetown encontramos um avião da BOAC parado, por
terem sido atacados de disenteria alguns elementos da tripulação”.
E sobre o
“catering” embarcado para o serviço de bordo, acrescenta que “as
refeições que nos foram fornecidas em Lisboa tinham o cunho das que são
fornecidas para as merendas no campo. Tudo em conjunto, mal acondicionado e sem
repartição”.
Chegou finalmente o tão esperado dia
31 de Dezembro do ano de 1946 solenemente anunciado por Humberto Delgado num
ofício de 27 de Dezembro dirigido ao Director Geral dos Negócios Políticos e da
Administração interna do Ministério do Negócios Estrangeiros informando que ”no próximo dia 31 inaugura-se, solenemente,
a carreira aérea montada pelos Transportes Aéreos Portugueses, serviço autónomo
deste Secretariado. A esta inauguração dignar-se-á assistir Sua Excelência o
Presidente da República e membros do Governo”, e acrescenta também “o prazer de contar com a presença do
Ministro dos Negócios Estrangeiros”.
O ofício compreendia ainda o pedido formulado
àquele Director Geral para que fossem prevenidas telegraficamente as entidades
diplomáticas e consulares portuguesas sobre o itinerário e o horário
estabelecidos para a viagem e assinado pelo Director Técnico Adjunto Manuel
Maria Rocha, em horas locais que previa a “partida
do avião para as Colónias às 14 horas locais” e que foi “rigorosamente” cumprida.
“Este é um acontecimento de extraordinária
importância” como salientou o Tenente Coronel Humberto Delgado no
discurso que encerrou a visita das entidades a esta cerimónia, “em que classificou como de maior interesse
nacional o acto que ia proceder-se. Portugal, a terceira potência mundial,
depois da França e da Inglaterra em matéria de escalas aéreas, não pode ignorar
o significado de uma carreira entre todas as províncias. E, se por agora estas
ligações são apenas quinzenais, nem por isso se abandonou a ideia de tornar
cada vez mais estreitas essas carreiras”.
A
tripulação escalada para o voo inaugural, o Comandante, Manuel Maria Rocha, o
1º Piloto/Navegador Roger de Avelar, a Assistente de Bordo, Lourdes Martins, o
Radiotelegrafista A. Pombo e o Mecânico Fonseca da Silva, depois de um
minucioso briefing sobre a viagem e após os cumprimentos de despedida às
entidades oficiais em especial a Humberto Delgado, o impulsionador desta
missão, dirigiram-se para a aeronave onde aguardaram o embarque dos seus dez
passageiros cujos nomes, por serem os “pioneiros” dos voos da “Linha Aérea Imperial”
dos TAP, aqui ficam registados:
-
Capitão Quintino da Costa, delegado do Secretariado de Aeronáutica Civil e
esposa; José Antunes, comerciante; Luís Pinto de Sousa, funcionário público; Miguéis
Lopes Mendes, presidente da delegação colonial; Abdul Karin Mamad, português
natural da Índia, gerente comercial e os jornalistas, Manuel Rodrigues do
“Diário de Notícias”, Frederico Alves de “O Século”, Fernando Teixeira do
“Diário Popular“, e Norberto Lopes do “Diário de Lisboa”, de cuja reportagem
nos socorremos ao longo desta memorável jornada.
Nesta viagem embarcaram 27 quilos
de correio para Angola, entre os quais algumas fracções de lotaria e 37 quilos
para Moçambique.
São 14 horas e os hélices começam
a rodar, primeiro o do motor esquerdo e depois do direito de acordo com o sinal
produzido pelo Comandante Rocha com a mão esquerda: o punho fechado e o
indicador em riste designando o arranque do motor esquerdo; segue-se nova
indicação do punho esquerdo agora com o indicador e o médio significando o
arranque do motor direito.
Feito o sinal ao operador de placa
para retirar os calços e depois de se certificar que as cavilhas do trem haviam
sido retirados bem com as coberturas dos “pitot”, inicia-se o ”táxi” para a
posição de descolagem, e pouco passava das 14 horas quando o Dakota atingida a
velocidade de despegue se ergueu no ar qual pássaro elegante.
Ouçamos agora o entusiástico
relato de Norberto Lopes, o enviado especial do Diário de Lisboa, que não
contém a sua emoção por se sentir livre das amarras que naturalmente o prendiam
à Terra e descreve numa prosa onde perpassa uma certa poesia:
“São 14 e 13. Voamos ao
longo da A. da Liberdade e deixamos, pouco depois, atrás de nós, o recorte
geométrico do Terreiro do Paço. A breve trecho, as nuvens tapam-nos o
horizonte. Elevamo-nos acima do algodão em rama que nos permite ver apenas
nesgas de terra”.
E á medida que voam para Sul e a
vida a bordo se organiza com o desvelo da jovem assistente, a adaptação dos
passageiros ao ambiente de voo é rápida e confidencia Norberto Lopes que “sente-se imediatamente uma sensação de
confiança na máquina e no piloto. O material dizem-nos ser excelente. O piloto,
comandante Manuel Rocha, é um veterano das carreiras de África que tem muitos
milhares de quilómetros. A certa altura larga os comandos, (para uma visita
de cortesia aos passageiros) e o avião é
guiado pelo piloto automático – o que não quer dizer que um segundo piloto não
esteja vigilante...”.
Depois de duas horas e vinte minutos
de voo aterram em Casablanca cujos minaretes recortados no horizonte haviam
sido avistados quando, baixando das nuvens, sobrevoam “campos cultivados onde pastavam tranquilamente rebanhos de carneiros”.
Era o último dia do ano de 1946 e
embora ainda atordoados pela aventura que haviam iniciado foram contagiados
pelo ambiente de alegria que reinava na cidade.
Festejamos a passagem do ano acrescenta Norberto Gonçalves “num “cabaret” incaracterístico, igual aos
“cabarets” de todo o mundo, no meio duma alegria fictícia e ruidosa”.
E continuou Norberto Lopes no seu
relato do dia 1 de Janeiro: “Estamos a pé
às cinco horas. Saímos de Casablanca à hora em que se apagavam nos “dancings” os
últimos ecos do “Reveillon”. Nas ruas cruzavam-se casacas com “djellabas”.( ...)
“Amanhece no aeroporto.
Apagam-se as luzes encarnadas e verdes da balizagem. O nosso Douglas aguarda
majestosamente, junto da pista, enquanto se cumprem as formalidades de
alfândega e passaportes.
Descolamos às 7 e 30. Acenam
lenços brancos de portugueses que saíram do restaurante, onde festejaram a
passagem do ano, e vieram despedir-se de nós, eles ainda encasacados e elas em
traje de “soirée”. O avião sobrevoa o campo e aproa a Sul.
Avista-se um grande incêndio no
horizonte. É o Sol que nasce elevando-se a pouco e pouco sobre um mar de
algodão”.
Com um tempo esplêndido e uma excelente
visibilidade, o Comandante Rocha resolve deixar de sobrevoar terra em Agadir,
uma cidade “branca e coquette que aparece-nos à direita , junto de uma baía
azul. Deixamos atrás o Atlas. Morrem os últimos restos de vegetação e começam
as dunas de areia sem fim” .
“ De Agadir a Vila Cisneros, é
uma tirada sem história. Às dez e vinte, passamos na vertical do Cabo Juby que
se perde no meio de nuvens baixas. A pouco e pouco o algodão desfaz-se e
abrangem-se a perder de vista, as dunas, com a sua ondulação característica.
Encho os olhos do deserto.
Voamos entre um mar de água e um mar de areia(...)
Aproamos de novo ao mar, até ao
Cabo Bojador que dobramos às 11 e 15. É uma língua de areia que entra pelo mar
dentro e que já deveria ser assim no tempo de Gil Eanes” comenta Norberto Lopes numa
alusão às viagens planeadas pelo Infante D. Henriques na persecução do
grandioso empreendimento dos descobrimentos marítimos.
“Ao meio dia começamos a
descer.
Avista-se uma extensa língua
de areia que corre na direcção Norte-Sul. Um forte colonial, de estilo
relativamente moderno e algumas casas muito brancas, aninhadas à sua volta,
como pintainhos em torno da asa protectora da mãe”.
É Vila Cisneros onde aterram numa
curta escala para reabastecimento de combustível. Uma hora e vinte minutos
depois, às treze horas e quarenta estão de novo no ar disfrutando de uma “verdadeira superalimentação de sanatório de
altitude”, um “almoço composto de
pastéis de bacalhau, dois ovos cozidos, galinha assada, fiambre fruta e vinho
branco”.
Após um percurso de 1.230
quilómetros cobertos em quatro horas e vinte minutos, o Dakota chega a Bathurst
(hoje Banjul), capital da Gâmbia, situada na Ilha de “St. Mary”, onde o Rio
Gâmbia desagua no Oceano Atlântico.
E, à chegada, como descreve o enviado do Diário de Lisboa, “verificam-se as maiores facilidades por
parte dos funcionários ingleses. Alojam-nos em Fajara, confortável instalação
colonial para o pessoal do aeroporto e dos passageiros em trânsito.”( ...)
“Aqui é verdadeiramente
África! Sente-se em tudo, na vegetação exuberante, no canto das cigarras, no
perfume da selva, na atmosfera quente e pesada. Envergam-se os primeiros fatos
brancos (..).
Levantámo-nos às 4 e 45
na “Rest House” de Fujara para descolar às 7 e 8 minutos de Yundum Bathurst,
escala de algumas carreiras da América do Sul. É aliás uma escala admirável
onde tudo é impecável, pontual, perfeito.
A tripulação do nosso
“Douglas” enverga já a farda tropical.”
“Às 7 e 40 depois de um
voo de curta duração sobre o Senegal entramos na Guiné” e sobrevoam dentro de pouco tempo o rio Cacheu.
A breve trecho alcançam “ Bissau que nos
aparece pela esquerda, iluminada pelo Sol numa clareira da bruma” e que o Comandante Rocha resolve
sobrevoar numa volta a baixa altura que permitiu aos passageiros distinguir “ os edifícios, as ruas, uma estátua, as
silhuetas minúsculas e espalmadas dos navios no porto como brinquedos de
crianças”.
Depois de sobrevoarem a cidade de Bolama e o arquipélago de Bijagós
passam agora sobre o território da Serra Leoa. A temperatura na cabina do avião
“refresca consideravelmente” pelo
facto de terem subido para os 10 mil metros de altitude “para fugirem às condições atmosféricas que não são favoráveis lá em
baixo” situações que o Comandante Rocha tão bem conhecia dos anos que voara
na SABENA.
Após quatro horas e vinte minutos de voo sobrevoam já a Libéria e em
breve iniciam a descida rumo ao aeródromo de Robertsfield situado a cerca de 56
quilómetros a leste da cidade de Monróvia para mais uma operação de
abastecimento necessário à continuação do voo até Accra.
“A descolagem faz-se às
12 e 18, depois do reabastecimento de gasolina. Subimos de novo para cima da névoa
que nos tapa completamente o horizonte terrestre (...)
Às 16, deixamos a Costa
do Marfim e entramos na Costa do Ouro. Uma hora depois mergulhamos nas nuvens.
Descobre-se a costa e a terra baixa coberta de arbustos. Aproximamo-nos de
Accra que nos aparece pela proa. A aterragem faz-se às 17 e 13. Foram cobertos
1.285 quilómetros, em 4 horas e 55 minutos”.
A viagem contínua com uma precisão que deixa os passageiros encantados
tanto mais que as condições meteorológicas encontradas em rota prejudicavam por
vezes os tempos de voo previamente calculados para uma velocidade entre os 250
e 280 quilómetros que permitiu que se cumprissem os tempos de voo programados
de 9 e 10 horas excluindo naturalmente a primeira etapa voada de 2 horas e 30
minutos entre Lisboa e Casablanca.
“Já era dia claro quando
descolamos de Accra”, continua Norberto Lopes, o
que os obrigou “a saltar da cama às
4, na característica “Rest House”, onde jantamos a passamos a noite”.
Sobrevoam Lagos na Nigéria, que não
conseguem avistar devido à bruma que cobre o horizonte, e em breve sobrevoam o
Golfo da Guiné coberto de nuvens “de
formas caprichosas que se acastelam abaixo de nós, e à direita desenha-se uma
cordilheira sombria de que os aviadores não gostam nestas paragens. Há um
pequeno balanço de curta duração (...)
“Às 14 e 30 de Greenwich, pois
já havíamos adiantado uma hora ao relógio começamos a descer. Dez minutos
depois voamos sobre terra. É o Gabão. O Comandante Rocha desce sobre o campo
que fica no meio de um maciço de verdura. Às 11 e 46 as rodas poisam na pista
de Liberville. A primeira tirada do dia, de 1.445 foi coberta em 5 horas e 32
minutos. A previsão era de 5 horas e 35 minutos”.
“Ao saltar em terra sente-se a
África, a verdadeira África. Calor ardente!”
A recepção à comitiva foi de um afecto
excepcional como de resto já vinham reconhecendo em todos os locais onde
chegavam e eram carinhosamente recebidos pelas populações locais.
Em conversa com os jornalistas o
governador que viera receber a comitiva portuguesa, confidenciava que o Gabão “está cheio de recordações dos navegadores
portugueses e que numerosos compatriotas nossos fixaram-se na África Equatorial
Francesa. Em Brazaville, por exemplo, há tantos portugueses como franceses”.
O horário que até ao momento vinha a
ser escrupulosamente cumprido sofre o primeiro contratempo com a demora no
reabastecimento que acaba por atrasar a partida.
Ao calor que haviam sentido em terra
segue-se depois uma deliciosa frescura que a temperatura exterior emprestava à
temperatura da cabina. Na verdade após sobrevoarem Libreville tiveram de subir
acima dos três mil e quinhentos metros para fugirem ao mau tempo que
encontraram após a descolagem e que mantiveram até depois do “Equador” que
cruzaram cerca das 16 horas e 5 minutos.
Com o sinal de apertar cintos ligados
por precaução à turbulência que se fazia sentir em consequência das trovoadas
existentes nas vizinhanças, passam a fronteira de Angola às 17 horas e 30
minutos tendo o Capitão Quintino, como o vinha fazendo ao longo da viagem,
enviado uma mensagem rádio ao governador, saudando todos os portugueses
residentes na colónia.
Avistam Cabinda e a majestosa foz do
rio Zaire. Entretanto anoitece. “Chegou a
prever a hipótese de aterrar em Ponta Negra se o campo de aviação de Luanda não
tivesse condições para aterragem nocturna. Recebeu-se, porém comunicação de que
o campo seria iluminado, e o Comandante Rocha resolveu prosseguir viagem.
O avião dá duas voltas
completas à cidade e vem poisar no campo escassamente iluminado, às 19 e 11
minutos, numa aterragem impecável que honra o grande piloto que tem sido a alma
da linha de África.
Aguardavam-nos o governador, o
arcebispo e grande multidão que nos dispensou carinhoso acolhimento. A segunda
tirada de hoje, de 1.200 quilómetros foi coberta em 4 horas e 18 minutos”.
É madrugada do dia 7 de Janeiro.
Luanda dorme ainda quando são despertados pelas 4 horas para permitir que a
descolagem se efectue às 6, depois de um repousante sono que um dia de
interrupção na viagem permitiu.
A inexistência de aeródromos de
recurso para um voo directo entre Luanda e Lourenço Marques obrigou o
itinerário da Linha Aérea Imperial a fazer um desvio que incluía como alternativos
em caso de emergência os aeródromos de Leopoldeville (Kinshasa), Loluabourg,
Elizabethville (Lubumbashi) no Congo e Salisbury na Rodésia do Sul.
“Estamos nos três mil metros
com uma temperatura muito agradável. Todo o percurso sobre o Norte de Angola se
faz sem avistar terra (...) Pouco depois entramos no Congo Belga. A bordo quase
todos os passageiros dormem pois a escala de Luanda quebrou o equilíbrio que
mantínhamos desde Lisboa. Depois dos “cocktails” variados, das refeições
abundantes, das bebidas generosas e de uma noite mal dormida, sentem-se os
estragos provocados pela cozinha portuguesa, pelo que o sono faz prevalecer os
seus direitos.”
“Após um voo de duas horas,
quase sem história, poisamos em Leopoldeville Depois de sobrevoarmos a velha Kinchasse
avistamos finalmente o curso imponente do Zaire, semelhante a um braço de mar e
voamos baixo sobre a cidade (...).
“O Douglas vai para o ar às 9 e
4. Deixamos à esquerda o Zaire com os seus numerosos canais e fazemos rumo a
sueste. Sobrevoamos a selva congolesa (...) A paisagem é imutável: manchas de
verde-escuro e manchas de verde-claro; floresta e capim (...)
Descemos. Já se avista no meio
do maciço arvoredo o pequeno campo de Luluabourg com a sua pista de terra
vermelha. Aterragem perfeita às 12 e 10. A chegada prevista era às 12 e 15. Não
está mal...”
Esta escala serve para o
reabastecimento de combustível findo o qual descolam cerca das 13 e 4 rumo a
Elizabethville.
O voo é efectuado a 1500 metros de
altura voando junto a uma camada de cúmulo-nimbos. “Há arcos-íris e relâmpagos no horizonte. Caem aguaceiros. Tomam-se
precauções a bordo. Amarram-se cintos. Felizmente o perigo passou!”
“Aproximamo-nos de Elizabethville.
A floresta estende-se a perder de vista (...) Sobem para o céu chaminés que
expelem fumo negro. É o cobre que sai das entranhas da terra (...) na rica
região mineira de Katanga.
“Aterramos às 16 e 13 depois de
percorrer 2.360 quilómetros em 8 horas e 19 minutos, ou seja menos 40 minutos
que o tempo previsto.
Eram precisamente 7 horas e 15
minutos quando saíram de Elizabethville na manhã do dia seguinte, experimentando
uma brisa fresca que sobreviera à trovoada que acompanhada de forte aguaceiro caíra
durante a madrugada.
“Às nove horas atravessámos o
Zambeze. Deixamos a Rodésia do Norte e entramos na Rodésia do Sul (...) Às 10 e
5 começamos a descer. Salisbury aparece-nos à esquerda, cinco minutos depois
aterramos num campo relvado onde recebemos os cumprimentos do cônsul de
Portugal. Fizemos 840 quilómetros em 3 horas e 5 minutos de voo. Pequena
refeição no restaurante do campo. Vamos descolar para a última etapa. O tempo
está magnífico (...) A hélice gira com mais força e o “Douglas” descola,
elevando-se no azul do céu. São 11 e 32 minutos (...) Às13 e 5 cruzamos a
estrada que marca a fronteira da Rodésia com Moçambique (...) No posto de
comando, abre-se diante de mim um horizonte mais vasto. O copiloto Roger de
Avelar, sentado ao meu lado, à medida que me dá explicações, limita-se a
corrigir os pequenos desvios de rumo do piloto automático. A emoção do voo não
existe para estes cavaleiros do ar que desempenham uma função meramente
científica. De quando em quando a estação radiogoniométrica mais próxima
dá-lhes o rumo. Em Angola e em Moçambique onde a aviação civil está mais
desenvolvida que na metrópole, as informações meteorológicas são insuficientes
(...)
Às 14 e 45 avista-se Lourenço
Marques. Não há uma nuvem. O céu limpou completamente. Começamos a descer. A
bordo nota-se a agitação da chegada. Precisam-se os contornos da cidade, ao
longe. O Comandante Rocha dá uma volta sobre o campo e vem poisar
impecavelmente na pista. São 14 e 55, nem mais um minuto nem menos um minuto na
hora prevista no horário.
“Completamos assim 12.585
quilómetros de voo que foram cobertos em 45 horas e oito minutos à velocidade
média horária de 280 quilómetros.
E Norberto Lopes não quis deixar de
salientar a empresa em que ele também participara referindo-se ao valor daquele
empreendimento.
“O dia de ontem (escreve ele no dia seguinte à
chegada a Lourenço Marques) representa
por isso uma data notável na história da nossa aviação comercial. É a nossa
primeira grande linha aérea. Montar uma linha aérea com cerca de 25.000
quilómetros de extensão através do continente africano não é empresa fácil
(...) A linha montou-se e demonstra-se que foi estabelecida com as
indispensáveis condições de segurança, tanto pelo que diz respeito a material
como a itinerário.
(...) Mais do que nenhum outro,
há um homem que teve hoje um grande dia. É o comandante Manuel Rocha que
conduziu desde Lisboa, secundado pelo copiloto Roger de Avelar, o magnífico
“Dakota” dos Transportes Aéreos Portugueses. Porque foi ele sem dúvida, a alma
deste empreendimento, o homem que lutou incansavelmente para conseguir esta
coisa que a muitos pode parecer simples, mas que oferece, em toda a parte e
principalmente num país como o nosso, tremendas dificuldades.
(...) Lourenço Marques
rejubilou com a inauguração da linha de África. O campo estava coalhado de
gente que fez à tripulação e aos passageiros um acolhimento afectuoso”.
Terminou como previsto pelo seu
impulsionador, o Tenente Coronel Humberto Delgado, esta longa odisseia que
marcou o começo de uma companhia de bandeira que se revelou ao longo dos
setenta anos da sua existência como uma marca que cumpriu os propósitos de
servir o país cujas cores da bandeira ostenta ainda no seu “logótipo”.
Lourenço Marques não podia deixar de
comemorar tão importante acontecimento.
O Comandante Rocha sorrindo feliz à
chegada a Lourenço Marques.
A imprensa publica no dia 11 de
Janeiro de 1947 a notícia com o título, “EM LOUVOR DAS ASAS PORTUGUESAS”, que a
“Associação Comercial de Moçambique
homenageou anteontem nas instalações do Casino Costa, com uma assistência de
mais de trezentas pessoas, o Comandante Rocha, a tripulação do avião inaugural,
representantes da Aeronáutica Civil, do Ministério das Colónias, do Diário de
Notícias, do Século, do Diário de Lisboa e do Diário Popular”.
Das palavras do representante da
Associação Comercial, o senhor Carlos Teodoro Martins, pronunciadas no seu
discurso, transcrevemos para encerrar este capítulo da vida de Manuel Maria da
Rocha:
Senhores tripulantes e
passageiros da primeira viagem aérea da 1ª carreira imperial!
Meus Senhores!
(...) Sabemos que, se várias
pessoas concorreram esforçadamente para se conseguir agora a 1ª carreira
imperial que liga com a Metrópole as maiores parcelas do Império, nenhuma
trabalhou para isso com mais afinco, inteligência e saber que o comandante de
Aeronáutica, Manuel Maria da Rocha, a quem, por isso, a Associação Comercial de
Moçambique que neste momento tenho a honra de representar, presta sincera
homenagem e apresenta os seus agradecimentos.
O Comandante Manuel Rocha era
já querido nesta terra não só pela sua irradiante simpatia natural como pelos
seus trabalhos anteriores em prol da eficiência das carreiras internas da
Colónia. A dívida de todos nós para com este homem aumentou agora
desmesuradamente e este banquete serve de pretexto para termos o prazer de lhe
poder gritar, com entusiasmo irreprimível, a nossa gratidão e a nossa amizade.
Mais uma vez e sempre muito e muito obrigados, Comandante Manuel Rocha”.
Reconhecido o sucesso do voo
inaugural, as carreiras da Linha Aérea Imperial realizadas
posteriormente cumpriram com regularidade os horários tal como previra o
Comandante Rocha.
Entretanto Humberto Delgado havia
pedido a sua exoneração do cargo de director do Secretariado da Aeronáutica
Civil em 31 de Dezembro de 1946, no dia em que o Dakota dos TAP iniciou o voo
até Lourenço Marques para representar Portugal na Organização da Aviação Civil
Internacional (OACI ou ICAO) sediada em Montreal no Canadá entre 1947 e 1950.
Curiosamente a oposição à chefia do
comandante Rocha vem-se acentuando com maior evidência por parte dos pilotos
originários da aviação militar já que os da aviação naval foram de uma preciosa
colaboração na realização do programa da Linha Aérea Imperial o que levou à
escolha para os primeiros comandantes dos subsequentes voos os pilotos da
aviação naval, Roger de Avelar e Rodrigues Mano.
O General Humberto Delgado e o
Comandante Rocha junto ao DOVE CS-TAB da SATA fotografados antes do voo de
visita aos Açores.
Um grupo de cinco açorianos, entre os
quais Augusto Rebelo Arruda, lançou os fundamentos de uma empresa de
transportes aéreos que viria mais tarde a ser conhecida por SATA, ao fundar em
Agosto de 1941 a Sociedade Açoreana de Estudos Aéreos Lda.
A 5 de Agosto de 1948, o único
avião da SATA, um Beechcraft UC-45 baptizado de “AÇOR”, sofre um trágico
acidente no seu primeiro voo de transporte de passageiros entre a Ilha de São
Miguel e a ilha de Santa Maria num dia com bom tempo, quando reportara ao
controle de Santa Maria que se encontrava numa longa final pelo que fora
autorizado a aterrar. O que na realidade se passou, jamais se chegou a saber e
a única certeza produzida foi que nunca apareceram quaisquer vestígios da
aeronave, da carga ou dos seus sete passageiros e dos dois membros da tripulação!
Como consequência as operações da
SATA foram suspensas, e instalou-se entre a população das ilhas um descrédito resultante
do medo na utilização de aviões como meio de transporte fiável.
É então que alguém no recém criado
Ministério das Comunicações que extinguira o Secretariado da Aeronáutica Civil
em 1 de Janeiro de 1947, substituindo-o pela Direcção Geral da Aeronáutica
Civil se lembra do nome do Comandante Rocha, o homem que havia recentemente
concluído a grandiosa tarefa da criação da Linha Aérea Imperial dos TAP e que
seria no seu entender a pessoa capaz de reorganizar e dirigir a SATA
restituindo aos açorianos a confiança necessária ao transporte de avião entre
as ilhas.
Contactado pelo director da “Casa
Bensaúde” principal acionista da SATA, o Comandante Rocha aceita o desafio que
lhe foi proposto, ou seja, a direcção técnica da companhia iniciando-a da
“estaca zero”, exigindo como única condição que fosse solicitada a necessária
aprovação do seu pedido de demissão dos TAP.
O seu requerimento mereceu a aprovação
do director geral, brigadeiro Carlos Marques Magalhães, que lhe foi comunicada
pelo superintendente dos serviços de operações, Comandante Roger de Avelar, com
a transcrição do respectivo despacho como se segue:
“ Louvo o Comandante de avião Senhor Manuel Maria Rocha, pelo muito zelo
e dedicação com que serviu nos Transportes Aéreos Portugueses durante dois anos
aproximadamente, muito contribuindo com sua grande competência profissional
para a organização e bom nome dos Serviços”.
Atente-se que, para além das
melhores condições materiais oferecidas como por exemplo o dobro do vencimento
que tinha no S.A.C., tem agora a oportunidade de realizar um dos seus sonhos porque,
como o expressou, “iria fechar-se o ciclo daquilo que sempre pensei conseguir - organizar
e inaugurar, as linhas aérea regulares em Portugal Ultramarino, em Portugal
Continental e finalmente em Portugal Insular”, em que a sua capacidade organizativa
era mais uma vez posta à prova!
A sua primeira diligência
consistiu numa deslocação urgente à Inglaterra, mais propriamente à fábrica de
aeronaves DeHavilland, com a finalidade de encomendar duas aeronaves DH.104
Dove, dois bimotores com a capacidade de nove a dez passageiros, promovendo os
necessários acordos para a instrução do pessoal mecânico e de rádio incluindo a
familiarização com os aviões escolhidos, na própria fábrica.
Como curiosidade, durante o tempo
que esteve em Inglaterra, além do curso de qualificação dos aviões Dove, foi
convidado para assistir aos voos de ensaio de transformação do avião
bombardeiro quadrimotor “Lancaster”, para a futura utilização de motores a
jacto nos aviões das linhas aéreas civis!
Nos primeiros dias de Maio de
1948, depois das formalidades de importação e registo na D.G.A.C. em Lisboa, os
dois Dove chegaram à ilha de Santa Maria nos Açores tripulados respectivamente
pelo Comandante Rocha e pelo piloto da fábrica, comandante Fellingam.
Sediados já definitivamente no
aeródromo de Santana na Ilha de São Miguel, estabelecidos os quadros do pessoal
e inspeccionados as instalações a as agências, o Comandante Rocha, como o havia
já testado quando em 1926 divulgava os voos de fretamento da sua recente
empresa aérea, a Aero Comercial, desloca-se às principais ilhas do Arquipélago
promovendo a confiança das populações com voos de divulgação juntamente com uma
acção de esclarecimento da sua mecânica capaz de proporcionar um transporte
rápido e seguro.
O receio que subsistia quando o
Comandante Rocha iniciou a série de voos entre as ilhas que iriam ser escaldas
pelas linhas da SATA foi aos poucos desvanecendo-se e conta-se que após
primeiro voo que fizera a Santa Maria, ao regressar a S. Miguel depois de entrar
no escritório do tráfego foi rodeado por um grupo de populares que vieram
certificar-se de que o avião conseguira regressar após o voo. Foi então que se
abeirou do Comandante Rocha um mulher que apertando-lhe um dos braços exclamou
num misto de espanto e alegria: “Afinal é ele mesmo! E está vivo!”.
A 1 de Agosto de 1948 é feita a
inauguração oficial das linhas aéreas da SATA, cerimónia a que assistiu o
Ministro das Comunicações, Coronel Gomes de Araújo e Director Geral da
Aeronáutica Civil General Alfredo Cintra
Atente-se que desde a chegada dos
dois aviões para a SATA, em Abril de 1948 até Junho de 1949 foi o único piloto
ao serviço porque o piloto indigitado, o
Comandante Barros de Brito que voara com ele na TAP perdeu a vida num acidente
de avião na Costa da Caparica.
Depois de perto de cinco anos de
serviço, o Comandante Rocha desliga-se da SATA em 1953 e regressa a Lisboa empolgado
por um novo desafio que se propunha alterar a monótona rotina dos voos entre as
ilhas que o fazia sentir-se prisioneiro de uma larga gaiola que limitava os
seus voos.
Na verdade um grupo de
capitalistas reunidos em Lisboa reunido em Lisboa resolvem formar uma sociedade
para explorarem linhas aéreas entre Lisboa - Nova Iorque e Lisboa - Munique.
Como esperado não conseguiram
reunir a totalidade do capital necessário pelo que o Comandante Rocha se
deslocou aos Estados Unidos onde a ideia da companhia aérea foi extraordinariamente
bem acolhida pelos capitalistas luso Americanos indicados pelo General Humberto
Delgado que participava na Sociedade como consultor técnico.
Por coincidência quando se desloca
a Los Angeles para visitar a fábrica dos aviões Lockheed em Burbank encontra em
S. Francisco o Almirante Sarmento Rodrigues Ministro do Ultramar grande amigo e
companheiro dos tempos em que iniciara os trabalhos de abertura das primeiras
linhas aéreas em Moçambique e que se conheceram quando ainda Capitão do Porto
do Chinde com o posto de 1º tenente da marinha e que se mostrou receptivo à
ideia de uma empresa aérea servindo as populações dos emigrantes portugueses
nos Estados Unidos.
Foi-lhe sugerido que o novo avião,
o Lockheed Super Constelation ainda em fase de acabamento nas linhas de
montagem, seria a aeronave ideal para a ligação Lisboa - Nova Iorque dado que a
própria fábrica disponibilizaria o pessoal necessário à manutenção.
Reunidas as condições financeiras,
formalizada a constituição da Sociedade, foi elaborada uma minuta de
requerimento redigida pelo General Humberto Delgado que a enviou à presidência
do Conselho de Ministros, acompanhada de uma carta pessoal dirigida a Salazar,
pois acreditava ser este o procedimento que garantiria o andamento do assunto.
Mas a resposta veio cerca de um
mês depois, proveniente do Ministério das Comunicações que por indicação da
DGAC informava que o pedido ficaria a aguardar melhor oportunidade da definição
governamental sobre a “futura política aérea”.
Alguém
comentou num tom de desalento que a definição da futura política aérea “iria ficar para as calendas gregas” o
que significava que tardiamente ou mesmo nunca se produziria qualquer definição
porque as “calendas” não existem no
calendário grego! Como consequência, o grupo desistiu.
A situação financeira do seu
agregado familiar começa a preocupar o Comandante Rocha que acabara por
utilizar grande parte das suas poupanças nas viagens aos Estados Unidos que
fizera durante os meses da preparação da sonhada empresa de aviação que iria
explorar duas linhas aéreas, uma entre Lisboa e Nova Iorque, entre Lisboa e
Munique.
Consegue que em 1953 o
Ministério do Ultramar o nomeie para o lugar de adjunto do director técnico E.J.
Longyear, uma companhia dedicada a serviços de engenharia geológica e de
mineração, que efectuava levantamentos aéreos e geológicos em Angola e
Moçambique ao abrigo do Plano Marshal.
Terminados os contractos
daquela companhia com o governo português em 1955, o Comandante Rocha na
situação de desempregado segue para a cidade Nampula no Norte de Moçambique
onde se estabelece no comércio de importação de automóveis e de máquinas actividade
que afinal lhe conferiram em tempos uma certa fama no início da sua vida
profissional.
E como não podia deixar de
acontecer a um profissional que carregava no seu íntimo o amor pela aviação dirige
a escola de pilotagem do Clube Aeronáutico do Niassa, onde preside à Comissão Administrativa
nomeada pelo governo do distrito com a finalidade de o reorganizar depois da
destruição das instalações e de todas as
aeronaves provocadas pela passagem de um ciclone tropical
O Comandante Rocha num
almoço organizado pelo Aeroclube de Gaza no Chai-Chai em sua homenagem
Entretanto o General Humberto Delgado,
pessoa que o comandante Rocha admirava e de quem se tornara amigo, decide
aceitar o desafio da oposição democrática ao governo de Salazar para se propor
à Presidência da República Portuguesa como candidato independente contra o
candidato do regime, o Almirante Américo Tomás, candidato da União Nacional.
Como era previsível o
Comandante Rocha aceitou fazer parte da comissão eleitoral da candidatura do
General Humberto Delgado para o Distrito do Niassa e acredite-se que no final
do escrutínio eleitoral que atribuiu a vitória ao candidato do Estado Novo, Almirante
Américo Tomás, houve um único círculo eleitoral, o círculo do Niassa com a sede
em Nampula, que deu a vitória ao general “sem medo” que um dia, numa conferência de imprensa da campanha eleitoral,
realizada em 10 de Maio de 1958 no café
Chave de Ouro, em Lisboa, quando
lhe foi perguntado por um jornalista que postura
tomaria em relação ao Presidente do Conselho, Oliveira Salazar, caso vencesse a eleição,
respondeu com a frase "Obviamente, demito-o!".
Aparentemente esta sua
participação na comissão das eleições presidenciais não provocou quaisquer represálias
por parte da polícia política do estado Novo, a PIDE, para além da violação sistemática
da sua correspondência.
Quando a sua vida se propunha
normalizar, sobreveio em Dezembro de 1961 uma doença que atinge a sua mulher
grávida de uma menina e que o obriga a vender a sua pequena empresa para
financiar a deslocação da família para a “metrópole”.
Felizmente que a saúde acabou por
ser finalmente recuperada. O nascimento de uma filha faz renascer uma esperança
rejuvenescedora, mas que aos poucos se desvanece face às contrariedades com que
vai deparando.
Na verdade, os gastos com os
tratamentos médicos e na maternidade,
acumulam-se muito rapidamente já que não consegue que lhe paguem o dinheiro
devido pelo trespasse do seu estabelecimento em Nampula.
Os recursos financeiros que
trouxera começam a esgotar-se pelo que apela ao director da DGAC, o engenheiro
Victor Veres, que lhe conceda um emprego como director de aeroporto ou
equivalente por se verificarem vagas em Lisboa e em Faro.
Assiste-se então a uma autêntica
odisseia de um homem desesperado que ora recebe uma notícia animadora de que
lhe vai ser atribuído um emprego como outra informando que terá de aguardar com
paciência já que uma resolução está para breve.
Mas, ou por ter participado na
Comissão do General Humberto Delgado ou por razões que estivessem ainda ligadas
à campanha que tentara impedir a sua contratação como piloto no projecto de
formação dos TAP e na implementação da Linha Aérea Imperial quando deixara a SABENA
e que acabaram por afastá-lo definitivamente dos TAP, o que é certo é que
acabou por ter de aceitar, 18 meses após a formulação do seu pedido, um modesto
lugar (e chamo de modesto porque para o desempenhar não serão necessárias as
habilitações técnicas aeronáuticas de um comandante de aeronaves) como
assalariado e com um vencimento de 2.900$00 mensais.
Corrigindo aquela “humilhação”
foi-lhe posteriormente atribuído por contracto o lugar de Encarregado do
Arquivo Técnico do aeroporto de Lisboa. Finalmente em 1969 passou a Encarregado
dos Serviços de Segurança Aérea, lugar que ocupa até Janeiro de 1976.
No entanto, quando em 1972
completou os 70 anos de idade, foi “autorizado” depois de uma exposição que fez
ao então presidente do concelho de ministros, Dr. Marcelo de Caetano, a
“continuar ao serviço” até que fosse examinada a sua situação, uma vez que não
tinha conseguido ser beneficiário da Caixa Geral de Aposentações pelo que,
segundo o regulamento em vigor, teria de deixar a sua actividade de funcionário
público ao atingir o limite de idade.
Era esta impensável, (porque
injusta), situação de uma possível indigência futura de alguém que entregou
meio século da sua vida exclusivamente à criação e desenvolvimento da aviação
civil em Portugal e que, quando no auge da sua carreira, se viu forçado a
deixar de voar.
E aos 73 anos de idade o
comandante Rocha continuava ao serviço do aeroporto de Lisboa com um vencimento
que rondava os 4.000$00 mensais e com uma dúvida - até quando as suas forças ou
a saúde o permitiriam manter-se ao serviço?
Não tendo direito a qualquer
pensão, não porque tivesse negligenciado uma previdência para o seu futuro, mas
porque pelas diferentes situações conferidas à sua colocação de funcionário,
ora como pertencente ao respectivo quadro, ora como contratado, ora como
assalariado, o Comandante Rocha elabora exposições sobre exposições sem
qualquer resultado, ficando-se apenas por intenções de uma possível futura
solução.
Em Janeiro de 1976, dez anos antes
do seu falecimento, esperançado num Portugal renascido das cinzas dum passado
tormentoso, faz um último apelo para solução do seu problema elaborando, num estado
de depressão moral, uma exposição entregue em 30 de Janeiro à Presidência do
Conselho de Ministros que contém além do seu currículo fotocópias de documentos
e recortes de jornais elucidativos do seu percurso profissional, e que termina
“agradecendo a boa compreensão de todas
as entidades que quiseram ter a maçada da leitura daquelas linhas e que, se as
acharem merecedoras de serem consideradas favoravelmente, o exponente
ficar-lhes-á muito grato, pois, se assim for, terão resolvido com a maior das justiças,
um dos grandes problemas que afectaram, tão duramente, um servidor da Nação e,
ao mesmo tempo, terão dado solução a uma situação, que já tem sido considerada
como uma das maiores vergonhas nacionais”.
Até ao final da sua vida nenhuma
solução oficial foi tomada para alterar a situação incerta do seu agregado
familiar.
Dos colegas, dos pilotos
portugueses sócios da APPLA, teve uma ajuda pecuniária que permitiu que a filha
terminasse os seus estudos universitários.
Esta história que aqui vos deixo
começou a ser pensada no dia em que um ex-colega da DETA, o Comandante Augusto José
Rodrigues, me entregou em 1987 uma colectânea de fotocópias, de documentos e
recortes de jornais relativos ao Comandante Rocha, acompanhado de uma observação:
“Caro Primavera. Aqui te deixo alguns elementos referentes ao
Comandante Rocha.
Acredito que irás escrever algo sobre o percurso de vida deste
nosso conterrâneo que não pode, que não deve, ser esquecida, porque Manuel
Maria Rocha e Armando de Vilhena da
Torre do Valle, foram os pioneiros, foram os pais da
aviação civil moçambicana.”
Vila de Parede 24 de Setembro de 2015.
J. Primavera
2 comentários:
Gostei muito do teu artigo. Trouxe-me de volta muitas e agradáveis recordações. Tudo de bom para ti. Aurélio Costa
Partilhei-o no meu Facebook. Os meus parabéns pelo texto, contribuiu excelentemente contra a injustiça e o esquecimento.
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