CHINDE
- Memórias de um passado longínquo de uma pujança comercial numa farta e rica
abundância.
MEMÓRIA 19ª
A PISTA DO
CHINDE
A história que começo agora a escrever,
nasceu naquela manhã de Julho quando, ao
chegar aos escritórios do táxi aéreo no aeroporto da Beira, me foi transmitido
o planeamento dos voos previstos para aquele dia:
- Piloto Primavera – transportar do Chinde para a Beira pelas 14 horas,
o engenheiro da Sena Sugar Estates, senhor Capitolino Paredes.
E uma nota final reforçava ainda
aquela instrução:
- Atenção - comparecer sem falta à hora planeada!
Este nosso passageiro extremamente escrupuloso
na execução do seu programa de trabalhos exigia que, sempre que possível, fosse
eu o piloto nos seus voos.
A razão desta exigência resultava de
uma relação que vinha já de longa data como a seguir se verá:
- Estávamos no ano de 1957, quando o
director dos Serviços de Agrimensura onde eu trabalhava me perguntou:
-
Primavera. Posso pedir-lhe um favor?
- Claro que sim, se estiver na minha mão! – respondi.
E foi então que, dum momento para o
outro fui integrado como instrutor de um curso de novos agrimensores numa
brigada da respectiva escola operando na região da Mailana a Norte de Lourenço
Marques. Não é que a missão não fosse das minhas preferências, só que a altura
em que me foi sugerida não vinha de modo algum a calhar já que estava ainda desfrutando
a minha recente “lua de mel“!.
- Oiça Primavera, ... verá que vai até divertir-se com os alunos que irá
por lá encontrar! Sobretudo um, o Capitolino...que ao contrário da maioria, é
uma autêntica catástrofe de cada vez que “pensa” em fazer qualquer coisa!
Tentava com estas palavras animar-me o
director do curso, o engenheiro Ventura, que ao volante de uma camioneta “WILLYS
JEEP”, nos conduzia por uma sinuosa picada de areia para o acampamento onde se
instalara a “escola”.
Já a poucos quilómetros do nosso
destino, deparámos à saída de uma curva com dois indivíduos negros que de
machado ao ombro, caminhavam na picada, à nossa frente.
– De
certo dois trabalhadores da brigada equipados com machados para a abertura de
picadas – acrescentava o meu companheiro ao mesmo tempo que os interpelava:
– Vão
para o serviço de agrimensura?
Instalados já na caixa da camioneta,
prosseguimos a viagem até que um dos supostos trabalhadores bateu
insistentemente no tejadilho da cabina num claro sinal de que era por ali que
eles pretendiam ficar.
-
Então, o que se passa? - interrogou admirado o meu companheiro?
Foi então que explicaram, num
português como aquele com que se fizeram entender, que não trabalhavam para a
brigada mas que levavam machados para “cortar
os elefante que os caçador matou ali na frente mesmo, ontem de tarde”!
Numa região onde a caça é escassa e
onde só até mesmo a carne de galinha será dificilmente comprada com a bagatela que
sobra dos magros orçamentos familiares, a possibilidade de desossar as sobras
das carcaças de dois elefantes compunha um acontecimento, um verdadeiro festim,
que movimentou os raros habitantes daquela região do mato numa felicidade que
escassas vezes acontecia.
Prosseguimos para o acampamento onde
aguardámos a chegada do pessoal que se atrasara na hora do almoço, porque atarefado
na recolha dos materiais destinados à instalação dos diferentes componentes,
como o grande telheiro que acolhia simultaneamente a sala das refeições, a sala
de trabalhos de cálculo, a sala de convívio e reunião dos alunos e professores.
Foi nessa altura que surgiu uma
camioneta, uma DODGE Station Power com dois alunos já meus conhecidos e um
terceiro de pequena estatura sem camisa, com a as costas e a cabeça expostas
aos raios quentes de um Sol de Maio vestindo uns calções de ganga, onde umas
botas de cano curto completavam a indumentária de trabalho.
Cumprimentou-nos com solicitude este
terceiro elemento que, dirigindo-se ao meu
companheiro, contava numa excitação fora do comum:
- Quer saber, Senhor engenheiro? Um caçador que por aqui esteve ontem,
atingiu dois elefantes com dois tiros de espingarda. Um caiu logo fulminado por
um tiro certeiro ... o outro, ferido de morte pôs-se em fuga pela mata ... e
foi então que eu corri atrás dele para ver onde cairia morto!
Olhando para o engenheiro que já me
mirava de soslaio com ar trocista, percebi:
- Este
é o Capitolino de que me falou?
- Eu não disse que o iria logo reconhecer?
Este jovem que iria mais tarde revelar
ser detentor de uma cultura pouco comum não conseguia, por mais que se
esforçasse, ajustar o seu biorritmo ao enérgico dinamismo que aquela profissão
reclamava.
Na verdade logo pela manhã cedo, pouco
depois do nascer do Sol, já os diversos grupos constituídos por professores,
alunos e pessoal auxiliar seguiam para o campo para cumprir as suas missões,
donde regressariam já perto do ocaso aproveitando a pouca claridade que ainda
restava para chegarem ao acampamento.
O ritmo era intenso pois que as
brigadas principiavam no primeiro dia de Maio e terminavam impreterivelmente em
finais de Outubro evitando a época das chuvas.
O Capitolino não conseguia acompanhar nem
mesmo os mais lentos de alguns dos seus companheiros “desenfiando-se”, sempre
que podia, das vistas de todos nós e não raras vezes o encontrávamos dormitando
à fresca sombra das árvores da mata.
Os trabalhadores negros que nos
auxiliavam nas tarefas de agrimensura, possuidores de um apurado poder de
observação aliado a um aguçado espírito crítico já o haviam apelidado de “mlala
pipe (pronuncia-se paipi)” com o que expressavam “o homem que dorme até debaixo
do tubo” (da torneira).
Por tudo isso o Capitolino depressa
abandonou o sonho que acalentara de vir a ser um dia agrimensor e com uns
dinheiros que conseguira amealhar, rumou à África do Sul onde concluiu em três
anos, na universidade de Witewatersrand em Pretória, um curso de engenharia civil.
Foi então que em 1965, ao entrar pela
primeira vez nas instalações do Táxi Aéreo de Moçambique, no aeródromo da Beira,
para embarcar com destino ao Chinde, olhou-me espantado :
- O
quê ... tu agora és piloto de aviões?
- E
tu é que és o engenheiro da Sena Sugar
que devo transportar ao Chinde?
- interroguei eu sem demora!
Depois deste nosso reencontro, oito
anos após diferentes caminhos trilhados desde os tempos da agrimensura, todos
os voos que eram solicitados pelo Capitolino a partir da Beira, do Chinde ou do
Luabo, tinham como piloto eleito em quem confiava, o seu “velho amigo
Primavera” como dizia, até porque me confessou sentir uma sentimento desconfortável
na descolagem – “uma estranha sensação ao
perceber que nada ficava por baixo do seu assento onde pudesse poisar os pés na
terra que o vira nascer”!
Nas várias viagens que fizemos, conversávamos
tempos sem conta, particularmente quando a paisagem que sobrevoávamos não nos
proporcionava a visão sempre aliciante de
um crocodilo atolado num qualquer lamaçal que se destacava da vastidão
do caniço ondulante que cobria a planície, ou de um bando de pelicanos voando, quais
cruzadores de imaginárias batalhas aéreas ou ainda de uma manada de elefantes
pastando na orla da floresta.
E foi durante estas conversas que entendi
a faceta erudita do Capitolino que revelava um particular interesse pela
história do rio Zambeze e em particular pela da Vila do Chinde uma povoação do
Distrito da Zambézia, um centro piscatório localizado a cerca de sessenta
quilómetros a Sul da cidade de Quelimane, no braço mais norte do delta do rio
Zambeze.
- Sabias
que a cidade de Quelimane esteve ligada até ao terceiro quartel do século
dezanove ao rio Zambeze, por um canal navegável por barcos de pequeno calado
que permitia o acesso directo àquele enorme rio e mais a montante à região
planáltica da África Central através do rio Chire um dos afluentes do Zambeze?
– desafiava o Capitolino a minha curiosidade.
E era ainda e só sobre este tema que
falava entusiasmado sempre que nos encontrávamos e pelo que dele aprendi, vou
partilhar convosco aqui nesta Memória:
- Quando o
canal que ligava a cidade de Quelimane ao rio Zambeze começou a ficar assoreado
pelos aluviões transportados pela forte corrente daquele rio tornou-se
necessário e urgente encontrar uma passagem alternativa, iniciando-se então uma
cuidada exploração do delta do Zambeze que conduziu à descoberta, no ano de
1889, do Rio Chinde, o ramo norte do Delta do rio Zambeze.
Entretanto as potências coloniais
europeias interessadas nas capacidades mercantis dos territórios da África
central e meridional haviam-se reunido em 1884 no Congresso de Berlim. Nele estabelece-se
a liberdade de navegação nos cursos dos rios africanos, em especial no grande Zambeze
e seus afluentes, gorando os interesses comerciais de Portugal em cujos
territórios coloniais corria aquele rio.
Convindo aos interesses mercantis de
missionários e comerciantes procedentes do Reino Unido, a Inglaterra, a
“pérfida Albion” como diria o Avô do meu amigo Janico, impõe a Portugal em 1890
um ultimato coagindo-o a assinar o tratado anglo-luso de 1891 que obrigou à
cedência de parte do território a ocidente do Lago Niassa em benefício da
Niassalândia, actual Malawi possibilitando-lhe o acesso ao Oceano Índico
através dos rios Chire e do Zambeze.
Recordo que o ultimato britânico de 11 de Janeiro de 1890 influenciou de forma permanente a evolução politica portuguesa que levou ao fim da monarquia constitucional portuguesa e à implantação da república em 5 de Outubro de 1910.
Simultaneamente aquele tratado outorga
ao Reino Unido a “Concessão do Chinde” por um prazo de 99 anos, onde, pasme-se,
vigorava um regime livre de impostos.
A “concessão” abrangia uma área de 10
hectares onde se encontravam os escritórios governamentais e os armazéns de depósito
das mercadorias descarregadas dos navios oceânicos provenientes da Europa para
um cais na orla ribeirinha, que seriam posteriormente baldeadas para as
barcaças do rio Zambeze.
Confinava com o território da
Concessão uma área de 50 hectares desprovidos de quaisquer privilégios
aduaneiros e destinada a acolher a população local.
O Chinde desenvolveu-se rapidamente
graças ao movimento de mercadorias que os navios da Union Castle Line e da
Companhia de navegação alemã da África Oriental traziam com destino ao
protectorado britânico da África Central, futura Niassalândia, o actual Malawi.
O assoreamento do rio Chinde provocado
pelos sedimentos transportados pela forte corrente do Zambeze começou
entretanto a limitar também a navegação reduzindo o tráfico no rio a barcaças
de pequeno calado.
Em fevereiro de 1922 o porto do Chinde
foi duramente danificado por um ciclone. A sua reparação iria envolver um custo
muito pesado que dificilmente se justificaria, tanto mais que nesse ano ficaria
terminada a ligação ferroviária da Niassalândia ao porto da Beira.
Deste modo o principal motivo da
existência da “Concessão” britânica desaparecera pelo que o respectivo contrato
foi cancelado em 1923 e o Chinde foi reintegrado na soberania portuguesa
passando a servir particularmente as exportações da açucareira Sena Sugar
Estates.
Estas interessantes conversas que aqui
para vós resumi, decorreram ao longo dos vários meses que voámos juntos, numa sequência
que eu por vezes tinha de interromper, até porque nem sempre estava inclinado
para ser seu exclusivo e “atento” ouvinte!
Regressemos agora ao início desta MEMÓRIA,
às instalações do táxi aéreo no aeródromo da cidade da Beira onde, depois de me
ter inteirado da escala de serviços, me dirigi para a aeronave que me fora
atribuída num passo lento, perscrutando atentamente o horizonte carregado que
se estendia para Norte do aeródromo da Beira, quando o meu patrão que notara o meu
olhar preocupado, aproximou-se e adiantou:
- Não se preocupe Primavera. Esta situação é de certeza local e não vai
além de uns poucos quilómetros daqui!
- Será?
– interroguei murmurando para os meus botões.
Como habitualmente, à medida que o dia
aquecia, o “cúmulo-nimbos da Gorongosa” agigantava-se, desenvolvendo-se
rapidamente deixando prever o que iria encontrar durante o voo!
Descolei por volta das treze horas e
não hesitei em escolher de imediato o meu caminho sobre o limite da costa bem
junto à orla marítima porque, sabia-o da
minha curta experiência, que a atmosfera ainda pouco aquecida proporcionaria um
voo mais calmo do que sobre o terreno esquentado da planície.
Entretanto uma camada contínua de estratocúmulos
acompanhava-me à esquerda da minha rota sugerindo que perto delas se associavam
rajadas de ventos muito fortes que
faziam prever que o meu avião se comportaria como leve pluma se acaso me descuidasse
penetrando naquela limite proibido.
Na linha de costa de brancas areias
cresciam aqui e ali grupos de palmeiras de cujo caule, junto às flores, se
extraía uma seiva opalina de gosto agradável e
refrescante, a “sura” e que proporcionavam ainda uma sombra que embora
pequena era disputada pelos pequenos antílopes quando o sol implacável aquecia
a planície.
Da orla daquela nuvem lá no alto, disparavam
de vez em quando relâmpagos que rasgando
o ar com um estrépito aterrador que faziam voar por vezes um qualquer bando de
garças cinzentas apanhadas desprevenidas pela borrasca que se reforçava. E se um raio atingia a copa de uma pequena
palmeira cujas folhas se agitavam violentamente sacudidas pelas fortes rajadas
de vento, restava em seu lugar tão
somente um fio de fumo que se desvanecia em loucas e desencontradas correrias
pela superfície das ondas na praia.
Após cinquenta minutos de voo, aterrava
na pista do Chinde onde já me aguardava o meu passageiro e amigo Capitolino,
engenheiro civil da Sena Sugar States que assustado me interrogou:
- Primavera
– com este tempo é seguro voar?
- Capitolino – respondi
com uma ponta de ironia – requisitaste
este voo para ser realizado às 14 horas deste último dia de Julho. Aqui estou
eu. Cumprindo as instruções do meu
patrão, daqui irei descolar contigo como passageiro se quiseres acompanhar-me,
é claro!
Enchendo-se de coragem, que lá isso
foi coisa que nunca lhe faltou ainda que por vezes com uns desméritos de
irresponsabilidade como aquele episódio que aconteceu no dia do nosso primeiro
encontro na escola de Agrimensura da Mailana em que foram abatidos dois elefantes,
o Capitolino não me fez esperar pelo seu embarque!
Neste voo que ele assegurava, “sem história que merecesse recordar”, ressaltava
a enorme tensão, quase pânico, que o mau tempo infundia no meu passageiro que a
cada rajada que provocava na minha pequena aeronave uma acentuada inclinação de
asas, se agarrava com redobrada firmeza à estrutura tubular que reforça o
para-brisas.
Foram outros cinquenta minutos
praticamente voando por baixo do mau tempo que entretanto progredira para Norte
para os lados do Zambeze, com fortes sacudidelas que, como se costuma dizer,
“não matam mas moem”!
Mal acabara de parar a minha aeronave
na placa junto aos escritórios dos TAM e já o meu patrão solícito, se apressava
a receber o meu passageiro:
-
Então engenheiro Capitolino, fez boa viagem?
Recuperando lentamente da agitada
“aventura” que havia pouco terminara, ainda com um andar um pouco trôpego e com
um semblante de poucos amigos - os olhos
injectados de sangue pelo medo que sentira - mal pode balbuciar:
- Boa viagem? Está a gozar comigo senhor Guerra? ...
Vila de Parede
17 de Agosto de 2013
J. Primavera
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