Floresta de Miombo (Brachystegia)
na região de Manica e Sofala onde se situa a pista de aterragem do Mucheve.
MEMÓRIA DECIMA
OITAVA
A PISTA DO MUCHEVE
Já se passaram quatro
anos depois daquele dia do mês de Março de 2008, em que me propus narrar os actos
daqueles pilotos que, operando nas mais adversas condições procuravam minorar
as necessidades das populações vivendo afastadas dos centros urbanos para quem
ficava a certeza de serem socorridas em qualquer emergência por aqueles bravos
pilotos conhecidos por “BUSH PILOTS”.
Não é difícil relembrar
as inúmeras vezes que voámos para as margens inundadas dos rios Limpopo, do
Save, do Buzi, do Pungué ou do Zambeze, para ajudar as populações reféns das cheias
que ciclicamente ocorriam quando aqueles rios, incapazes de conter tão grande
volume de água nos seus leitos, galgavam as margens tornando impraticável a
utilização de quaisquer meios de deslocação por terra.
- Sr. Quental – tem de levar urgentemente uma vacina contra o
tétano para socorrer um acidentado na povoação do Búzi – avisava a Dona Orquídea que
recebera o pedido telefónico de socorro para esse serviço.
De imediato a
manutenção aprontou o Cessna 172 abastecendo-o com o mínimo de combustível para
ir à pista do Buzi situada na margem direita do rio do mesmo nome, junto às
instalações da açucareira e regressar à Beira num total de vinte minutos de
voo, tendo em atenção que no regresso, a descolagem ficava muito limitada pelo
tamanho reduzido da pista parcialmente alagada.
Tal como todos nós, o João
Quental sabia que dispunha de uns escassos duzentos metros para a aterragem e
para a descolagem. A aproximação era por esse motivo executada com o avião “pendurado”
no motor que, mal passasse sobre a cabeceira da pista, era completamente “reduzido”,
deixando que o avião “caísse pesadamente” e se agarrasse ao piso molhado imobilizando-se
numa curta distância, com a ajuda dos travões aplicados a fundo!
Na descolagem, se conseguíssemos
agora acompanhá-la do lado de fora do avião, iríamos seguramente sofrer com aquela
lenta corrida já que o avião parecia não querer acelerar, fazendo com que a cabeceira
da pista se aproximasse velozmente do avião, enquanto a água do rio corria mais
à frente, indiferente à ansiedade de quem pilotava.
E já próximo dos derradeiros metros que sobravam do curto
comprimento da pista, o Quental seleccionaria a primeira posição dos “flaps”
que, aumentando quase instantaneamente a sustentação, lançava o avião para uns escassos
centímetros acima da água permitindo que se libertasse de uma situação perigosa,
que só mesmo uma muito forte ligação, como a dos “BUSH PILOTS” às populações
ribeirinhas, lhes permitia destemidamente afrontar!
Tempos depois daquele voo
para o Buzi, logo pela manhã, ainda não eram oito horas, já um casal de
clientes aguardava na sala de espera dos escritórios do nosso táxi aéreo a
chegada dos pilotos para um serviço de voo que os levaria de regresso ao
Mucheve na Região de Manica e Sofala onde o casal Ribas possuía uma concessão
de exploração de madeiras na importante floresta de Miombo que cobre cerca de dois
terços do território de Moçambique.
Esta floresta que deve o
seu nome à árvore predominante, o miombo (Brachystegia), encerra um
ecossistema de elevada importância social, económica e ambiental, pela sua
acção na vida dos seres que a povoam, tanto nos seres humanos como nos animais
selvagens, os elefantes, os hipopótamos, os antílopes, os leões e os macacos.
Na realidade, a
subsistência das populações moçambicanas, sobretudo as rurais dependia fundamentalmente
dos produtos obtidos directamente das
florestas, tais como frutas, mel, lenha, madeira, carvão vegetal, forragem para
o gado e a própria caça.
A exploração da floresta
alimenta por seu lado um grande número de actividades industriais como as serrações mecânicas, o fabrico
da pasta de papel, o fabrico de contraplacados e fósforos, a destilação de madeiras exóticas e a
extracção de resinas, de óleos e taninos.
As madeiras resultantes do corte
dos toros nas serrações, destinavam-se na sua maioria a aplicações na
construção civil e em travessas para assentamento de carris de caminhos de
ferro. Mas eram particularmente as madeiras das espécies exóticas como a
chanfuta, a umbila, a jambire, a panga-panga ou a mafamati, que revelavam um
elevado valor comercial pela sua utilização na marcenaria e na carpintaria,
quer no fabrico de mobiliário de elevada qualidade e exótico efeito, quer na
aplicação ornamental na construção civil.
Ao falar da floresta
moçambicana, ocorre-me agora referir um tio meu que trabalhava nas oficinas do
Almoxarifado de Fazenda de Lourenço Marques, onde existia uma serração mecânica
que ele regularmente inspeccionava. E sempre que eu o visitava, conduzia-me
pela mão explicando-me inevitavelmente a vantagem das diversas máquinas que ele
orgulhosamente ajudara a instalar.
Os enormes troncos, pesando
por vezes mais de cinco toneladas que chegavam regularmente à serração, provinham
da parte sul da província do Maputo e eram transportados a partir de Catuane em
vagões que circulavam pela linha de caminho de ferro que entroncava em Goba Fronteira
na linha principal que ligava Moçambique à vizinha Suazilândia.
Esta linha que fora construída
nos anos sessenta para escoamento do ferro das minas de Bonvu Ridge na
Suazilândia com destino ao Japão, percorria cerca de cem quilómetros desde a
estação de Goba até ao Cais Gorjão em Lourenço Marques.
Desta linha saía finalmente
um pequeno ramal que abandonando o recinto do cais, terminava junto ao armazém
da serração mecânica do Almoxarifado de Fazenda onde os troncos eram finalmente
descarregados dos vagões para os “chariots” que os transportavam até às mesas
de corte.
Nas minhas primeiras visitas
àquela serração, o ruído infernal produzido pelas serras circulares de bancada,
pelas serras de fita, pelas traçadeiras de toros, pelas guilhotinas, mas
sobretudo o ruído produzido pelas máquinas de trabalhar as superfícies, como as
plainas, as fresas, as brocas, provocava-me um desconforto só compensado pelo cheiro
perfumado da madeira triturada pelos dentes das serras.
Tudo o que via e ouvia infundia
em mim um certo respeito por aquela actividade que, cedo entendi, requere uma cuidada atenção na formação
de uma mão de obra qualificada, concertada sobretudo com uma rigorosa e
exigente disciplina na laboração.
Que o diga Silvino de Deus
capataz de uma serração mecânica operando para os lados da Moamba.
Desde que, logo pela manhã começava
a actividade na serração, Silvino de Deus vigiava com redobrada atenção o movimento
dos “ seus meninos”, como ele chamava quando se referia aos trabalhadores
daquela serração, sempre atento a quaisquer falhas nos procedimentos de
segurança.
Este homem buscava impor a
disciplina no trabalho socorrendo-se de um bastão pintado com listas
horizontais brancas e vermelhas, pelo que era conhecido pelo pessoal da
serração por “Ametaco” que no dialeto “xironga”, expressava o homem do bastão, o homem do pau,
com que punia quem descurasse a segurança e colocasse em risco a própria integridade
física.
Num fatídico dia, Silvino
de Deus, preocupado com um dos “seus meninos”, um jovem aprendiz que ele vigiava em particular, descorou por
instantes a sua atenção na máquina que operava e os dentes implacáveis de uma
serra de fita deceparam-lhe com uma incrível
rapidez a mão direita junto ao pulso.
No tempo em que este
acidente ocorreu, qualquer reimplante de um membro amputado era tarefa praticamente
inconcebível pelo que, após um curto tempo de imobilização, regressou à oficina
com um arranjo em cabedal para lhe proteger o coto que restara na extremidade do
seu braço direito.
Silvino de Deus não perdeu só
a mão direita. Perdeu também o apelido de Ametaco e passou a ser conhecido por Silvino Maneta
ou só pelo Maneta.
Mas pior que tudo isso, Silvino
de Deus perdeu parte da sua identidade física e por causa disso perdeu também aquela
energia que fizera dele um homem activo, um homem consciente da ameaça que
aquelas máquinas, em permanente laboração no meio de uma ensurdecedora confusão,
representavam para os trabalhadores movimentando-se nos espaços apertados existentes
entre elas.
Essa fora a razão da sua escrupulosa
postura na vigilância dos “seus meninos” com vista à segurança que afinal ele
não conseguira, nem para si, promover com eficiência.
A sua alegria e
consequentemente o seu dinamismo foram murchando substituídos por um profundo
abatimento até que certo dia, não muito distante do dia em que aconteceu aquele
estúpido acidente, por já não demonstrar mais qualquer utilidade na cadeia da
produção, foi despromovido e colocado no depósito de recepção das madeiras.
Tempos depois foram-lhe retirados os benefícios anteriormente conferidos.
Regressemos agora ao
escritório dos TAM onde encontramos o casal Ribas aguardando a chegada do
piloto que os transportaria até à pista do Mucheve.
- Senhor Quental leve o casal no Cessna 180 que já deve estar disponível
na placa de estacionamento – adiantava a Dona Orquídea sempre
atenta à distribuição dos voos pelos pilotos.
O dia amanhecera cinzento
com uma chuva miudinha que teimava em cair ininterruptamente. As nuvens pareciam querer agarrar-se à terra
ainda fresca, permanecendo a pouco mais de mil e quinhentos pés acima do
terreno o que não era nada favorável à realização daquele voo sobretudo porque
seria efectuado sobre a floresta de Miombo que cobria quase todo o percurso de
voo até ao Mucheve.
- Senhor Quental este tempo é
praticamente local. Pode à vontade contar que depois de passar o Dondo as
nuvens acabam! – acrescentava o nosso patrão numa tentativa de minorar as
dúvidas do nosso colega.
Apesar da boa vontade
manifestada pelo senhor Guerra, as nuvens extendiam-se à frente do avião que
voava muito próximo das copas das árvores, que a configuração do Cessna, um
avião de asa alta, permitia que se avistassem olhando para baixo através das duas
janelas laterais. A chuva miudinha que caía sobre o para-brisas, escoava-se em
gotas maiores que rapidamente desapareciam impelidas pela deslocação do ar
acelerado pela hélice mesmo no nariz do avião, afectando substancialmente a
visibilidade horizontal.
Deste modo, com uma
visibilidade reduzida a umas poucas centenas de metros seria muito difícil
distinguir entre as inúmeras clareiras que os habitantes locais roubavam à
floresta para cultivarem a mapira, o milho e a mandioca e aquela clareira que
seria o destino do voo – a pista do Mucheve.
O voo saíra da Beira
seguindo um determinado rumo que permitiria que ao fim de quarenta minutos estivesse
à vertical da pista. Como a visibilidade se mantivesse
reduzida, quando foi atingida a hora prevista para a chegada, porque não a
avistasse, o João adoptou o procedimento recomendado para aquela situação que
consistia em voar a figura de um quadrado centrado na hipotética posição da
pista, alargando o tamanho da figura em cada volta executada, até ao limite de
dez minutos, findos os quais só restaria mesmo a decisão de regressar em ao
aeroporto da Beira.
Não foi fácil escolher esta
solução, a única que lhe restava para terminar o voo em segurança. Para um
profissional como o João com a experiência que trazia como piloto da Força
Aérea Portuguesa durante a guerra colonial em Moçambique, esta decisão requeria
uma coragem e firmeza necessárias para ultrapassar o sentimento de frustração que
experimentava por não conseguir completar um serviço de voo ainda que justificado
pelas condições meteorológicas adversas.
Será que os passageiros
entenderiam a razão deste aparente fracasso?
Diz o povo com razão, que depois
da tempestade vem a bonança e a justificá-lo, o dia seguinte ao do insucesso
que relatamos, amanheceu numa atmosfera tão seca e tão límpida que a
visibilidade era praticamente ilimitada.
O casal Ribas que voltara ao
nosso escritório para concluir a viagem para o Mucheve, sussurrava a Dona Orquídea:
- Não nos mande aquele piloto de ontem, por favor ...
- Não, não será ele porque está a voar agora para Quelimane. O piloto
que os vai levar é aquele que está ali à secretária, de nome Primavera – adiantava
a Dona Orquídea e acrescentava em defesa do bom nome da sua empresa e dos seus
pilotos – mas tomem bem nota que os
nossos pilotos são muito competentes. Se ontem não aterraram como estava
programado, foi porque era impossível fazê-lo e se o Senhor Quental não o
conseguiu, mais ninguém o conseguia!
Para este meu voo foi
escolhido um monomotor de asa baixa, um “Comanche”, avião mais cómodo que o
utilizado no dia anterior e sobretudo muito mais silencioso, o que à partida aplacava
qualquer desconfiança dos passageiros quanto ao seu sucesso.
Com o mapa aberto sobre as
minhas pernas logo após a descolagem, ascendi aos cinco mil pés altitude o que me
permitiria alcançar um vasto horizonte naquela manhã de um belo e radioso dia
de Sol.
- Conhece o Mucheve? – perguntaram
receosos os meus passageiros não querendo manifestar abertamente
qualquer dúvida sobre os meus conhecimentos.
- Sim, sim conheço ... –
respondi, sem me alongar mais numa
indesejada conversa por me sentir ainda melindrado pelas observações que o
casal fizera ao trabalho do Quental e muito particularmente porque esta era a minha
primeira viagem para o Mucheve!
Ao fim de vinte minutos de
voo, praticamente a meio do percurso conseguia já distinguir com nitidez, por
entre as inúmeras clareiras abertas na floresta, o espaço completamente desimpedido
da pista em que em breve poisava suavemente no final de uma viagem de sonho.
O casal Ribas chegara
finalmente a casa num voo conduzido por um aprendiz de piloto, no início da sua
carreira profissional.
Vila de Parede, 13 de
Janeiro de 2013
1 comentário:
Como habitualmente 5 * estas memórias do Comte. Joaquim Primavera
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