O PIPER APACHE 150 pertencente à PLACO AIRCRAFT SALES, de certo a AERONAVE DE SERVIÇO mais disputada pelos vendedores daquela empresa. Esta aeronave era semelhante à que pertenceu ao Comandante Faria do Gurué e que foi entregue à PLACO como retoma para a compra de um AZTEC. (ver o texto).
MEMÓRIA DÉCIMA PRIMEIRA
COISAS DO ARCO - DA - VELHA.
Esclarecimento prévio ao título desta MEMÓRIA:
Ao dizer-se “isto é do arco-da-velha” ou “são coisas do arco-da-velha” é o mesmo que dizer que são coisas incríveis, invulgares, absurdas, mirabolantes.
Segundo Orlando Neves, esta expressão tem origem no Antigo Testamento. No seu Dicionário de Expressões Correntes (Editorial Notícias, Lisboa), identifica o “arco-da-velha” como o arco-íris com que Jeová teria sinalizado a Moisés, segundo a lenda, o fim do dilúvio: - “este é o sinal da aliança que tenho estabelecido entre mim e toda a carne que está sobre a terra” (Génesis, 9.12.17). E conclui, que desta maneira nasceu biblicamente o maravilhoso arco-íris, o arco-celeste, o arco-da-velha. E velha porquê? Porque vem descrito no Antigo Testamento, no Velho Testamento, ou seja, na lei velha.»
Já o académico brasileiro R. Magalhães Júnior, no Dicionário de Provérbios e Curiosidades (Editora Cultrix, São Paulo), prefere uma outra explicação: “o arco-da-velha (a velha é uma feiticeira), não é mais que o arco-íris. A crença popular supõe que ele bebe água num lugar para despejá-la noutro”.
João Ribeiro [em Frases Feitas – Estudo Conjectural de Locuções, Provérbios, etc., 2 vols., Rio de Janeiro, 1908-1909], repetindo, a propósito a demonstração de Sainéan Lazare, diz que a expressão arco da bere, (de beber, em italiano), gerou em português, com algum descaminho, arco-da-velha”.
(Informação copiada do site - http://ciberduvidas.sapo.pt/).
«Acrescento ainda a estas explicações, que a silhueta do dorso encurvado da bruxa, ou feiticeira, sugere à nossa imaginativa a visão de um arco.»
Aclarado este breve comentário, olhemos agora para a fotografia desta elegante aeronave, um “Piper Apache 150”, que encabeça esta narrativa.
Como de certo estão recordados, foi rigorosamente uma aeronave igual a esta que o meu saudoso colega e Amigo, o comandante Miguel Faria Peixoto, o “Faria do Gurué”, entregou à Placo como retoma para a compra de um Piper Aztec.
Entretanto em Outubro de 1965 aquela empresa recebera um Piper Apache que passou a ser, a partir de então, a aeronave de serviço mais disputada pelos vendedores da PLACO AIRCRAFT SALES.
Este Apache foi registado pela Autoridade Aeronáutica Sul-africana com a matrícula ZS-EEE, o que nos oferecia a possibilidade de uma brincadeira com os controladores dos aeródromos que mais frequentemente utilizávamos.
Em vez de ZS-EEE (na fonia aeronáutica, pronunciada como zulo siera – echo echo echo) chamávamos o controlo com uma identificação onomatopaica: “aqui zulo siera – EEEEEeeeeeeeco”.
Ora este elegante bimotor de comandos suaves e efectivos, com um cockpit silencioso e bem iluminado, possuía dois motores com uma potência total à descolagem de 300 cavalos. Entre os pilotos era conhecido por “motor e meio”, porquanto com a falha de um motor, os 150 cavalos do motor operativo eram insuficientes para mantê-lo a voar, não cumprindo portanto as performances obrigatórias de certificação dos multi-motores. Na verdade, com um único motor a trabalhar, ainda que operando com as cargas normais, esta aeronave não mantinha a altitude de voo e descia continuadamente numa ladeira suave até atingir o solo ou a água.
Que o diga o Calrão quando um dia, descolado da Beira com material pesado destinado ao BNU de Nampula, teve de parar um dos motores por falha na pressão do óleo de lubrificação, a umas poucas dezenas de quilómetros do aeródromo do destino. De imediato o APACHE começou a perder altura de forma constante, numa descida suave, enquanto o Calrão procurava descobrir perto da rota uma pista há muito desactivada. Finalmente encontrou-a e sem mais hesitação aterrou de “barriga”, deixando para trás as asas arrancadas pelos arbustos que entretanto haviam já crescido, ocupando juntamente com o capim a antiga faixa de aterragem.
Contou-me mais tarde que passara por um tremendo susto mas que saíra ileso desta incrível situação!
Entretanto, a minha admissão no quadro do pessoal da Placo tivera como finalidade a substituição de um vendedor de origem britânica, um tal Roger Lee, que havia pertencido a uma esquadrilha de caça da RAF e que se classificava com certo orgulho como um “all weather pilot”, o que lhe outorgava uma certa importância profissional!
Como fosse necessário transmitir-me informação dos assuntos correntes do nosso mercado aeronáutico de Angola de que passaria a ser o responsável, sobretudo o contacto com a empresa Robert Hudson nossa representante em Luanda, preparamos a deslocação até àquela Colónia, utilizando o nosso agora já conhecido ZS-EEE!
A nossa viagem teria como primeira etapa a cidade de Windhoek na Namíbia onde detínhamos uma empresa de manutenção que prestava assistência a todos os nossos aviões PIPER voando na região, com vista à minha apresentação aos seus responsáveis.
Porque a rota directa com origem em Pretória e com destino àquela cidade teria obrigatoriamente de passar pelo Protectorado da Bechuanalândia, tivemos de solicitar às autoridades britânicas sediadas em Pretória a necessária autorização de sobrevoo do território, com 24 horas de antecedência.
De Windhoek voaríamos para Sá da Bandeira (actual Lubango) com vista a cumprir as formalidades de entrada em território português, visitando ainda o Lobito antes da nossa chegada a Luanda.
Nesta primeira etapa da nossa viagem de três dias em que percorremos uma distância aproximada de três mil e duzentos quilómetros em cerca de treze horas, actuei a maior parte do percurso como navegador.
Tal posição permitiu-me apreciar todas aquelas belas, quanto estranhas vistas aéreas e guardar na minha memória as mais lindas paisagens olhadas pela primeira vez:
- Desde logo, as areias douradas do Deserto do Kalahari que contrastam com o fértil planalto da Huíla de argila avermelhada, onde a linda cidade de Sá da Bandeira se revia orgulhosamente no recorte da Serra da Chela, guardando para os mais íntimos as belezas do planalto como a Fenda da Tundala, as Cascatas de Huila e da Humpata.
- A beleza suave e calma da encantadora restinga do Lobito onde as águas verdes da baía se juntavam às do oceano mesmo na ponta do farol. E pergunto-me, porque não eleger ainda o velho Hotel Terminus cujos amplos quartos, virados para o mar e refrescados pela brisa marinha, nos proporcionaram o nosso primeiro sono repousante em terras de Angola, devidamente protegidos dos mosquitos por alvos mosquiteiros?
- E o que vos dizer da foz do Rio Cuanza? Aquele imenso caudal de água tinto do ocre das terras arrastadas pelas chuvas que caíam nos planaltos do interior. O rio corria apressado, dificilmente contido nas amplas margens, com pressa de juntar as suas águas turvas, às águas cor verde-esmeralda do Oceano Atlântico. Mesmo no derradeiro final da sua viagem, uma restinga de areia branca surgida da margem esquerda junto à foz, contrariava a passagem das águas do rio encurvando-as para Norte, atrasando por momentos o encontro tão desejado!
Depois de Luanda e terminados os contactos previstos, encetamos o regresso com a mesma disposição que existiu desde o início, principalmente a do meu companheiro que via assim mais próximo o seu regresso a Inglaterra.
Antes de retornar a Windhoek fizemos um pequeno desvio da nossa rota e do Lobito voamos para o Bongo onde nos aguardava um cliente muito especial: - o Dr. Roy Parsons, americano, missionário e médico da Missão Adventista do Bongo que se situava a cerca de 64 km de Nova Lisboa (actual cidade de Huambo) e onde funcionava um hospital considerado uma instituição modelo.
Essa nossa viagem destinava-se a ultimar as especificações de uma encomenda muito especial: - um avião Cherokee 235 equipado com um kit de emergência que permitiria o referido médico socorrer com a maior rapidez qualquer situação de urgência que ocorresse dentro da área do planalto do Huambo.
Como curiosidade, refiro que não participei na entrega final deste avião, porque na altura já tinha deixado a PLACO. Recordo-me que o “ferry flight” de Wonderboom até Luanda foi realizado pelo Comandante Pestana, na altura piloto da DTA de Angola.
No dia seguinte descolámos de Sá da Bandeira onde havíamos pernoitado depois de tornados do Bongo, planeando uma próxima aterragem em Windhoek antes da chegada a Wonderboom em Pretória.
Era agora a minha vez de pilotar, possibilitando ao meu companheiro repousar neste primeiro percurso de cerca quatro horas.
Tínhamos já cruzado a fronteira terrestre de Angola junto ao rio Cunene com cerca de 50 minutos já voados, a cerca de 6.000 pés de altitude, quando o Roger Lee, despertado pela minha voz, reportando ao controlo de Windhoek a nossa entrada na Namíbia, me alerta com um brado inquietante:
- Atenção … falha de pressão no motor direito!
Os nossos olhos fixaram-se de imediato no indicador da pressão de óleo que indicava zero.
Ao mesmo tempo passávamos em revista, com redobrado cuidado, a temperatura da cabeça dos cilindros daquele motor, atentos a qualquer sinal do aumento do seu valor!
Nada aconteceu! E ao fim de uns poucos minutos encaramos a situação com a melhor das hipóteses que se nos oferecia e que seria uma falha na indicação da pressão confirmada pelo facto de não se alterar aquela temperatura.
Deste modo respiramos mais afoitos, sorrindo aliviados! Confesso que nessa altura cheguei a pensar no que acontecera ao Calrão naquele voo para Nampula, de que vos falei de início!
Mal tinha passado uma hora após aquele incidente quando se repete igual situação no outro motor:
- Atenção… falha de pressão no motor esquerdo!
E num ápice a situação complicou-se.
Só nos restaria mesmo acreditar que se tratava de falha em ambos os indicadores da pressão, porque a paragem de algum dos motores, não nos deixaria alternativas aceitáveis. Na realidade, olhando para qualquer dos lados da nossa rota não se descortinava qualquer povoação. Somente terreno seco, com piso muito irregular, estendendo-se a perder de vista.
Estávamos a uns 80 quilómetros à direita da Lagoa de Etosha conhecida por Etosha Pan e que faz parte da célebre reserva de caça com o mesmo nome. Só se avistavam pequenas lagoas de cor avermelhada orladas por contornos brancos do sal que sobrava da água que se havia evaporado.
Não havia onde poisar em segurança o nosso pequeno avião. Só nos restava voar enquanto pudéssemos! Por isso voamos. Voamos mais cerca de hora e meia até que finalmente e sem mais sobressaltos chegámos a Windhoek.
Os nossos semblantes eram de tal modo carregados que o responsável da manutenção que aguardava na placa de estacionamento a nossa chegada, ao encarar-nos, iniciou de imediato, sem quaisquer comentários, uma investigação às causas do que nos havia acontecido.
Após umas horas de persistente pesquisa eis que finalmente se encontraram as razões invulgares da nossa avaria, diria mesmo absurdas, como terão ocasião de ver nesta rápida reconstituição:
- A nossa aeronave passara por uma grande revisão nas oficinas da PLACO em Wonderboom, com a finalidade de repor os motores a zero horas (como se fossem novos).
- Depois de revistos, os motores foram colocados em cavaletes para serem posteriormente montados nos respectivos berços. No entanto junto aos hangares apareciam com frequência umas pequenas abelhas africanas, que voavam solitárias, procurando afincadamente quaisquer orifícios onde pudessem construir os seus ninhos feitos de lama. Porque iriam inevitavelmente introduzir-se nas linhas dos circuitos do óleo do motor, um dos mecânicos, para evitar esse inconveniente, terá providencialmente tapado aquelas aberturas, em ambos os motores, com pedaços de desperdício (aglomerado de fios não aproveitados na tecelagem que se usa nas oficinas de mecânica para a limpeza das máquinas ou das mãos quando sujas de óleo).
Depois de assentados os motores nas respectivas células, ao efectuarem as necessárias ligações, os mecânicos esqueceram-se de retirar aqueles tampões que haviam sido providencialmente colocados!
Seguidamente tudo aconteceu. O óleo que passa pelo indicador de pressão arrastou lentamente o desperdício para dentro do instrumento, até que finalmente foi impedido de circular. Bloqueada assim a linha, a indicação da pressão desceu para zero. Esta actuação foi contudo lenta, já que facilitou que o óleo circulasse por aquela linha primária por mais de umas trinta horas.
Prevendo situações similares, estes pequenos motores possuem duas linhas de óleo para lubrificação dos seus componentes: - uma linha primária, e uma secundária controlada por um sistema de “by pass” que desvia o circuito do óleo para esta linha sempre que existir qualquer bloqueio na linha principal. O único óbice é que o óleo neste circuito não passa agora pelo indicador de pressão, pelo que as indicações de ambos os motores caíram para zero!
Estava desvendado o “mistério” daquelas estranhas avarias que infernizaram o voo de Sá da Bandeira até Windoeck provocando-nos um dilatado mal-estar!
Já mais calmo, repousando à sombra de uma acácia de rubras flores, deixava que os meus olhos contemplassem, sem nada ver, todo este cenário com que fui confrontado, murmurando sozinho para os meus botões, já que o meu companheiro, o britânico Roger Lee, dificilmente poderia entender o meu comentário final, por razões óbvias das diferenças das nossas culturas!
- Para qualquer piloto, uma avaria num motor é sempre encarada como uma possibilidade real.
- Mas a mesma avaria nos dois motores dessa aeronave, ajuizei eu já em voz alta, só mesmo UMA COISA DO ARCO-DA VELHA!
Boas férias para quem as tiver e a continuação de boa disposição e saúde.
Até à DÉCIMA SEGUNDA MEMÓRIA PARA UM BUSH PILOT.
O meu obrigada ao Cte. Primavera.
1 comentário:
Li mais esta descrição das Memórias de um Bush Pilot do Comte Primavera, como se também tivesse feito parte dessa épica viagem de Pretória - Luanda – Pretória, tal o realismo que incutiu na sua descrição.
Obrigado Cte. Primavera e já agora um bom inicio de Outono para a Luísa Hingá e para si .
Abraço
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