Recordemos, na tranquilidade do nosso lazer, aquilo que vos relatei no PORDENTRO anterior.
Logo no início da minha vida profissional e no primeiro voo ao serviço do Táxi Aéreo de Moçambique (TAM), fui assaltado por um inquietante sentimento de desânimo, precisamente por não ter sido capaz de aterrar no aeródromo do Luabo, levando a bom termo a missão que me fora conferida e que consistia em recolher passageiros da açucareira Sena Sugar Estates, com destino à Beira.
Contudo, aquela decisão de alternar para o Chinde foi de certo uma opção sensata já que, não existindo as condições ideais para a aterragem, não iria pôr em perigo a minha vida nem a integridade do material que me fora confiado.
Mas nem sempre um piloto de táxi aéreo pode tomar decisões em conformidade com a filosofia que lhe foi incutida durante a aprendizagem de voo e que visa especialmente a prevenção da segurança da operação. É que a vida de um piloto de táxi aéreo orienta-se particularmente, por uma correcta confiança na avaliação das suas capacidades, o que o leva por vezes a arriscar um pouco além do que a segurança aconselha, para poder afinal voar.
O Piloto de Táxi Aéreo actua quase sempre em condições idênticas às de um “Bush Pilot”, pois opera na maioria das vezes, em pistas sem marcações de bermas nem cabeceiras; pistas onde não se cumprem as distâncias mínimas aos obstáculos; pistas de pavimentos em terra batida com pisos muito irregulares, com cabeceiras e bermas exageradamente cobertas por arbustos (quando não por árvores); pistas apenas de nome, simples locais de aterragem, como por exemplo, uma rua principal ladeada por meia dúzia de toscas construções de um pequeno aglomerado populacional, ou como as areias húmidas nas praias durante a baixa-mar; pistas que nunca foram aprovadas para utilização da navegação aérea, isto é, que nunca foram sujeitas a vistorias necessárias à sua abertura; pistas por vezes tão especiais que os passageiros são obrigados a assinar antecipadamente uma declaração imposta pela autoridade aeronáutica, isentando-a da responsabilidade por quaisquer danos pessoais verificados durante a operação; pistas para utilização das quais não existem informações meteorológicas, nem muito menos o luxo de um serviço de controle aéreo – mas, pergunto, “a vida de qualquer piloto não é afinal constituída por uma sucessão de acontecimentos susceptíveis de potenciais perigos?”
E se vos disser agora, que antes de obter o meu PPA, trabalhei durante cinco anos nos Serviços da Aeronáutica Civil onde, como topógrafo, participei no planeamento, na construção e na fiscalização de alguns dos principais aeródromos em Moçambique, tendo como preocupação prioritária, o cumprimento das directivas publicadas, que impunham padrões rigorosos visando uma segura operação das aeronaves. Fui ainda destacado para várias missões de vistoria de pistas com vista à sua abertura, cumprindo com rigor os procedimentos destinados a salvaguardar a segurança da navegação aérea.
E se ainda acrescentar que, de um momento para o outro, me vi obrigado a subverter parte de uma filosofia que orientou toda a minha formação aeronáutica, quando um dia, depois de obter a minha licença de Piloto Comercial de Aeronaves, decidi seguir a vida de piloto profissional de aviões e aceitar o lugar de piloto de táxi aéreo na cidade da Beira.
Mas, se agora mo permitirem, irei recuar um pouco na minha vida de piloto, precisamente para o dia em que o meu bom amigo e instrutor de voo do Aeroclube de Moçambique, Orlando Teixeira, na manhã do dia 15 de Outubro de 1962, no aeródromo da Mavalane em Lourenço Marques, após eu ter completado 12 horas de voo de instrução e depois de uma volta de pista num Piper J3 , olha-me nos olhos e, saindo do avião, diz-me:
- Estás largado. Voa agora sozinho aplicando aquilo que aprendeste. Bom voo!
Todos vocês pilotos sabem como eu, qual a sensação que experimentamos nesse momento!
Porém não é dela que vos irei falar, já que o que tenho para vos contar, é muito diferente do que possam imaginar e que por isso mesmo sinto necessidade de partilhar convosco.
O Orlando deixara-me na pista paralela aos hangares do Aeroclube, a pista 10/28.
Tal como aprendera, regressei ao início da pista e olhei para a torre de controle que utilizando a lanterna de sinais me deu autorização para a descolagem acendendo a luz verde.
Cheio de confiança avancei o acelerador todo à frente: a aeronave vibrava toda (e como vibrava! - pensava eu sozinho) e à medida que ia adquirindo velocidade lá foi subindo para o ar levando-me com ela e transmitindo-me um sentimento misto de receio e de eufórica alegria.
Fiz a volta de pista e tão preocupado estava com o velocímetro, com o altímetro e com o conta-rotações, que me posicionei na final, sem nunca mais me lembrar de olhar para a torre de controle. E, numa aproximação impecável, aterrei suavemente no princípio da pista 10, que aliás era bastante comprida. Regressei ao início da cabeceira, voltei a acelerar e o Piper-Cub, vibrando sempre, salta mais uma vez para o ar. De repente sou alertado, pelo clarão vermelho de um “very-light” lançado pelo controlador de serviço do aeroporto, seguido de uma série de relâmpagos brancos da lanterna de sinais, de que algo de muito anormal se passara e que deveria aterrar de imediato regressando à placa de estacionamento.
Obedecendo aos sinais, regresso ao hangar e depois, com o coração querendo saltar-me do peito, desloco-me à torre de controle, onde o controlador de serviço, acompanhado por um comandante da “Air Rhodesia”, me aguardava de cenho bem carregado.
Eis em poucas palavras o que se passara:
Quando fazia o circuito para aterragem no meu voo a solo, aproximava-se um VISCOUNT da “Air Rhodesia”, autorizado a prosseguir para a final da pista 23, que cruzava com a pista 10 onde eu me preparava para aterrar.
O controle informou a aeronave comercial da minha posição e como eu, depois de ter aterrado, fizesse a inversão na pista voltando ao início da cabeceira, autorizou-a a aterrar.
Então aconteceu o insólito – sem olhar para a torre para obter o necessário sinal, inicio a corrida de descolagem e passo por cima do VISCOUNT que acabara de aterrar, a cerca de uns 300 pés de altura!
O incidente foi ali mesmo analisado, comentado, mas não foi sujeito a procedimento oficial dadas as circunstâncias de se tratar do meu primeiro voo a solo.
- Não te vamos cortar as pernas, mas nota bem, que isto te sirva de lição e que nunca mais volte a acontecer algo de semelhante na tua vida de piloto, disseram judiciosamente o comandante da “Air Rhodesia” e o controlador de serviço que ainda acrescentou:
- E lembra-te que nem sempre se tem a sorte que hoje tiveste!
Caríssimos e pacientes leitores - digo-vos que aprendi com este incidente algo que em circunstância alguma esqueci:
- Obter sempre autorização, quer visual quer por fonia, antes de iniciar qualquer manobra num aeródromo;
- Não entrar num circuito de aeródromo sem me certificar da existência de tráfego quer por observação visual ou informação por fonia;
- Não aterrar ou descolar sem verificar que a pista está livre de quaisquer obstáculos, mesmo depois de ter obtido a autorização do controle.
Mas, pela observação dos erros cometidos pelos outros participantes deste incidente, aprendi ainda que, mesmo que o controle tenha indevidamente autorizado o voo de largada de um aluno, sabendo que havia tráfego a chegar dentro de uns 30 minutos e mesmo que, ao verificar que esse aluno não respondia aos sinais visuais por ele emitidos, o controle tenha perigosamente autorizado o VISCOUNT a prosseguir para a aterragem, o comandante da aeronave em aproximação, devidamente alertado, não devia de modo algum ter aceitado esta situação de potencial perigo porque ele é afinal, legalmente, o último responsável pela segurança da sua aeronave. Não devia ter aterrado.
Por fim, contrariando a observação do controlador que evocou a minha sorte por não ter havido um acidente, aprendi algo que me acompanhou ao longo da minha vida profissional - o cumprimento das regras de voo prescritas, quer nos Anexos, quer nos manuais de operação das aeronaves e sobretudo, como aluno, o cumprimento dos ensinamentos do meu instrutor, que me obrigava por norma a utilizar todo o comprimento de pista disponível para descolar.
Se depois de ter aterrado, eu não tivesse regressado ao princípio da pista para utilizar todo o seu comprimento, de certo que não teria passado por cima do VISCOUNT, e mais certo ainda, que não estaria agora a escrever estas Memórias.
Tudo isto já se passou há muito tempo, mas o que aprendi desde então, permitiu-me chegar até aqui para vos contar alguns episódios da vida dos Bush Pilots em Moçambique.
Concluído este pequeno desvio aos meus intentos propostos para estas Memórias, aqui estou para vos falar agora de um casal de madeireiros que construíra uma pista no meio de uma densa mata, conhecida pelo seu próprio nome – a pista de aterragem de Martinote.
Mas sobre ela e sobre o casal que utilizava o avião como meio normal de acesso à cidade da Beira, vos irei falar no próximo PORDENTRO.
Até lá … votos de Boas Festas e de um Novo Ano de 2009 com muita saúde, para todos vós e vossas famílias.
Bons voos.
Sem comentários:
Enviar um comentário