Memória Primeira:
Em meados de Fevereiro, durante um almoço de confraternização dos reformados da APPLA, o meu colega e Amigo Sá Couto, confidenciou-me que gostaria de fazer um safari à Namíbia, com início em Windhoek, passando pela reserva natural de Etosha, com uma visita às célebres quedas de água do imenso rio Zambeze, no local de Vitória, no Botswana, desafiando-me a que o acompanhasse.
Curioso, logo que cheguei a minha casa, liguei-me à internet e visitei o sítio http://www.dunas-safari.com/.
Seduzido pela imagens que se me apresentaram, deliciei-me com as belas fotos que me recordaram de pronto as cores inesquecíveis das dunas ondulando pela imensa vastidão do Kalaari, irradiando tons de vermelho quando perto do pôr-do-sol, ou de mostarda, quando o dia despontava e que me trouxeram à memória os cheiros e os sons de África donde me ausentara num dia do ano de 1972.
Ciente daquilo que tanto atraía a vontade do Sá Couto, não adiei por muito tempo uma resposta, e elaborei de imediato o e.mail que reproduzo a seguir, que isto das novas tecnologias tem de ser aproveitadas exactamente para imprimir uma celeridade às comunicações, na transmissão das nossas sensações, na partilha das nossas opiniões.
Eis o e.mail (em que introduzi pequenas modificações):
“Caro Amigo
Fui ao site "dunas safaris" que indicaste, e verifiquei que se propõem programas de muita boa qualidade. Todos eles são excelentes, e por tal, de difícil escolha!
Dado porém que dispões de tempo, acredito que o circuito de 15 dias, com partida de Windhoek, para visita às quedas de água de Vitoria, com regresso à Namíbia, pelo Botswana, atravessando o deserto do Kalahari, é a escolha acertada de um programa fabuloso!
Julgo que nunca to disse, mas trabalhei como piloto vendedor de aviões Piper, na empresa "Placo Aircraft Sales", na África do Sul.
Durante os meses em que aí estive empregado, fiz vários voos ferry, com início no aeródromo de "Wonderboom" em Pretória, tendo como destino a cidade de Luanda, em que sobrevoava uma parte apreciável do território da Namíbia, num voo que compreendia um total de 16 horas, 10 das quais sobre o deserto do Kalahari !
Descolava de Pretória, e voava cerca de 730 milhas na direcção do poente, sobre a parte sul do Botswana (que nessa altura era um protectorado Inglês denominado Bechuanalândia) e aterrava em Keetmanshoop, uma cidadezinha da Namíbia situada a cerca de 200 milhas a Sul de Windhoek, onde pernoitava.
No dia seguinte, manhã cedo, descolava com destino a Windhoek, onde cumpria todas as formalidades de emigração, seguindo depois para Sá da Bandeira, cerca de 580 milhas a Norte, já em Angola.
Ao rever agora o mapa da Namíbia, com a indicação dos programas propostos, recordei-me dos escassos pontos de referência que utilizava para aquela travessia, num extenso trajecto, que só a fresca juventude da altura acreditava possível fazer sem problemas:
- passava "abeam" Mariental, Otjo, Otjivarongo, e à vertical de Etosha, que limita a Oeste a reserva natural do mesmo nome, e que a televisão tão amplamente tem divulgado.
Esta reserva, atravessada no sentido dos paralelos por um lago normalmente seco, desafiava o meu jovem espírito de aventura, o que normalmente me levava a desviar “imprudentemente” do caminho previsto no plano de voo, afastando-me por mais de 30 milhas para leste, pela planície do lago Etosha, perseguindo zebras, bois-cavalos (gnus), búfalos, gazelas, kudos, elefantes, que habitavam aquela célebre reserva de caça, numa louca e vertiginosa correria!
Todas estas recordações despertaram em mim o desejo de voltar a rever esses lugares, acedendo ao convite do meu companheiro Sá Couto. Porém a razão refreou esse meu entusiasmo, já que os meus próximos 75 anos me levam a ponderar entre a troca desses lugares maravilhosos que vi e vivi, por outros mais calmos que ainda não conheço.
Tenho pena mas na verdade se acompanhar-te seria a minha vontade, prefiro desejar-te de todo o coração que, se puderes, te decidas em ir, e encontres um companheiro de viagem, porque aquilo que irás desfrutar, como as quedas de água do Zambeze em Vitoria, os animais selvagens vivendo no seu habitat, o imenso, o indescritível, o maravilhoso deserto, o Kalahari, com o seu hálito quente, árido, acolhedor e sobretudo, experimentar o calor afectivo dos naturais da Namíbia, são experiências raras que hoje em dia, dificilmente se poderão descobrir.
Caro Sá Couto, confesso-te que depois de terminado este e.mail fiquei com vontade de partilhar com os colegas e amigos esta minha curta mas proveitosa experiência de voar sobre as florestas, sobre os desertos, sobre as inóspitas montanhas, lagos e rios de Moçambique, Zâmbia, Malawi, África do Sul, Suazilândia, Botswana, Namíbia e Angola, como "bush pilot", designação anglo-saxónica, para designar os nossos "pilotos do mato".
Prosseguindo esta ideia surgida na sequência da mensagem que acabei de vos reproduzir, irei ensaiar uma série de pequenas “memórias” que procurarei encaminhar para publicação (caso sejam aceites) no nosso PORDENTRO, esperando com elas homenagear os nossos colegas pilotos que voam nas regiões mais inóspitas do nosso planeta, em particular os de Moçambique, onde nasci e iniciei a minha actividade aeronáutica, e com quem aprendi e partilhei experiências maravilhosas.
Quem são pois esse pilotos designados por “BUSH PILOTS”?
Só encontrei uma fugaz e incompleta referência aos “Bush Pilot”, na Enciclopedia Internacional da Aviação, publicada em 1977 pela “Octopus Books Limited de Londres”, que assim são referidos:
“Os Bush pilots (pilotos do mato), abundam ainda no Norte do Canadá, no Alasca e nos lugares mais recônditos da Austrália.
Aqui há poucas ou nenhumas auto-estradas e caminhos-de-ferro; para um “bush pilot”, o conhecimento particular das comunidades, da topografia do terreno e das condições do tempo locais, são tão importantes como a sua aptidão para o voo.
São necessárias capacidades especiais para se operar no Norte em condições de temperaturas muito baixas no inverno.
Os bush pilots frequentemente utilizam nos seus aviões, skis no inverno e flutuadores no verão. Em todas as outras situações, as rodas dos respectivos trens de aterragem são severamente maltratadas em superfícies irregularmente duras. ”
Esta definição aqui transcrita, particulariza um grupo muito restrito de países.
No entanto serve de indicador para compreendermos as três principais razões determinantes da existência deste tipo de voo:
- A falta de meios de comunicação,
- A extensão territorial desses países em questão,
- A carência de infra-estruturas aeronáuticas.
É claro que os bush pilots não existem só no Canadá, no Alasca ou na Austrália. Não poderemos ignorar, os pilotos que voam em quase todos continentes, como o Africano ou o Sul-americano, mormente no sertão brasileiro e na floresta amazónica.
Alguns dos nossos colegas dos TAP, tal como eu, passaram também por esta prática de pilotagem tripulando, aviões dos táxis aéreos em Moçambique, ainda que numa fugaz experiência.
Foram no entanto todos aqueles outros pilotos, que persistentemente operaram através dos tempos, quer nos anos de paz, quer nos da guerra colonial, que entendo que constituem os verdadeiros bush pilots da aviação moçambicana, e a quem estas memórias pretendem homenagear.
Sem nunca esquecer os nomes dos demais, (como o do Jenico Barreto, do Durval, do Mário Gouveia, do Calrão, do Moura, do João e José Quental, do Rolando Mendes, do Joaquim Craveiro e de tantos, tantos outros…), quero aqui referir-me, em particular, aos nossos saudosos colegas, Faria Peixoto (o Faria do Gurué) e Jorge Guerra (o Guerra dos TAM), meu primeiro patrão, e bom Amigo também, porque, em cada momento que nos encontrávamos, mais e mais me assombravam os testemunhos que deles colhia, na oportunidade do voo, no conhecimento do terreno e das condições de tempo, e sobretudo no sentido de orientação por eles revelado, só comparável aos dos pombos-correios, voando sem referências exteriores aparentes, sem mesmo utilizar a ajuda de uma bússola, instrumento que normalmente não compensavam com regularidade.
E aqui termino a apresentação desta minha proposta, deixando desde já prometido que o primeiro relato destas “memórias”, se reporta ao dia em que o meu patrão, Jorge Guerra, assomando à porta da saleta dos pilotos dos TAM, me disse:
- Primavera prepare-se para ir comigo a Salisbury.
Mas isso só para o próximo PORDENTRO…até lá…
È um órgão de divulgação interna para os pilotos associados do SPAC.
Terei muito gosto de te enviar os que já foram publicados e todos os outros que vou escrever, à medida que forem publicados.
A única coisa que te peço é que informes os leitores do teu BLOGUE, que essas memórias vêm sendo publicadas naquele órgão do SPAC, o PORDENTRO."
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